Por que ler os clássicos da filosofia?

Por que ler os clássicos da filosofia?

Os clássicos devem ser lidos pois isso é melhor do que não os ler. Pelo menos esta é uma das respostas de Ítalo Calvino à pergunta em sua obra Por que ler os clássicos. Quando falamos sobre os clássicos da filosofia, no entanto, a questão apresenta outras nuances. Se filosofar significa pensar por conta própria, se o objetivo da filosofia é nos tornar pensadores independentes, por que então nos ocupar tanto com textos que foram escritos, por exemplo, há 2.500 anos? Não empregaríamos melhor nosso tempo se, ao invés de lermos milhares de páginas de textos empoeirados, de séculos atrás, estivéssemos escrevendo sobre os problemas de nossa própria época?

Dizer que filosofar é pensar por conta própria revela apenas parte da história. Filosofar significa, de fato, pensar por si mesmo, mas só na aparência a filosofia é um empreendimento solitário. Como afirmou o filósofo francês Louis Althusser em sua obra How to be a marxist in Philosophy, a filosofia só pode acontecer em diálogo com os outros, e tal interação se dá não apenas em nosso próprio tempo e com nossos contemporâneos, mas também com o passado. A única maneira, no entanto, de entrar em contato com o passado e aprender com as melhores mentes que já passaram por este mundo é através da leitura de seus textos.

Não há atalhos aqui. Por mais desesperador que o volume de leituras exigido pelo fazer filosófico possa parecer, estudar filosofia requer o confronto com dezenas, centenas de obras ao longo dos anos. A formação de um filósofo nunca acaba, sendo preciso encontrar um balanço entre a leitura do passado, o diálogo com o presente e a escrita para o futuro. Destacar unilateralmente este segundo aspecto, buscando originalidade a todo custo sem levar em consideração a história da filosofia, traz pelo menos dois riscos graves: o de 1) reinventar a roda e o de 2) tratar as discussões de maneira superficial.

Vamos falar inicialmente sobre reinventar a roda. Acho pouco provável que alguém consiga, por exemplo, recriar toda a filosofia crítica de Immanuel Kant por esforço próprio, isolado em um quarto por trinta anos a fio. Se tal tentativa fosse feita, imagino que o resultado seria algo semelhante à malsucedida restauração do quadro Ecce Homo, de Elías García Martínez, realizada por Cecilia Giménez na Espanha.

Karl Marx dava o nome de Robinsonadas a tal empreitadas solitárias, referindo-se com isso à história do náufrago Robinson Crusoé, do romance homônimo de Daniel Defoe. O indivíduo que realmente quer pensar sozinho, de maneira original, deveria, antes de tudo, ir para uma ilha deserta sem acesso a nenhuma literatura. O que ele produzisse ali, isolado, isso sim seria produto de sua própria cabeça. O que acontece na maioria das vezes, todavia, é que o indivíduo apenas não se lembra de onde tirou as supostas ideias brilhantes que considera suas. É como afirma Fiódor Dostoiévski em seu romance O idiota: "Basta a certos indivíduos assimilar uma ideia expressa por outrem, ou ler qualquer página solta, para imediatamente acreditarem que essa é a sua opinião pessoal espontaneamente brotada de seu cérebro."

A filosofia é um diálogo, um movimento constante. Quando vamos tratar filosoficamente de determinado assunto, estamos entrando em uma discussão que já está em andamento. Ilustremos da seguinte forma: imagine um indivíduo chamado João entrando em uma sala na qual uma discussão qualquer está acontecendo. Ele então simplesmente interrompe a conversa para apresentar sua própria opinião sobre o tema, sem tentar se inteirar do que as pessoas já estavam falando sobre este mesmo assunto por horas a fio, antes de sua chegada. Como podemos avaliar a atitude de João? O que esperaríamos de um indivíduo sensato em tal situação? 

João pode parecer individualista, desrespeitoso ou mesmo arrogante. Seu comportamento não faz sentido algum, mas é exatamente isso o que faz um indivíduo que tenta dar opiniões em filosofia sem conhecer a tradição, entendida aqui não no sentido de dogma, mas de contribuições já realizadas a determinado tópico. Seria de se esperar, em nosso exemplo, que o indivíduo primeiro entrasse na sala, se inteirasse da discussão, das reflexões já apresentadas até aquele momento, para então intervir em alto nível, da melhor maneira possível, trazendo progresso à discussão.

Quando se trata de textos, identificamos tal postura na forma de citações. Mencionar autores significa que estamos dialogando com eles, e geralmente com as melhores mentes que já trataram sobre determinados temas. Um trabalho de pesquisa é uma conversa, e se conversamos com interlocutores desqualificados, este diálogo é prejudicado. Daí a enorme importância de saber escolher bem quem são nossos parceiros na busca pela verdade.

René Descartes, um dos principais filósofos da subjetividade, também ressaltou a importância de se dialogar com a tradição. Em sua obra Discurso do método, ele afirma que “a leitura de todos os bons livros é igual a uma conversação com as pessoas mais qualificadas dos séculos passados, que foram seus autores, e até uma conversação premeditada, na qual eles nos revelam tão-somente os melhores de seus pensamentos”. Interessante notar que tal observação vem justamente de um filósofo caracterizado como um pensador solitário, isolado em uma sala e diante de uma lareira.

Não realizar este diálogo com a tradição, ademais, nos leva ao segundo risco mencionado anteriormente: tratar as discussões de maneira superficial. Qualquer indivíduo que já tenha compreendido bem pelo menos uma obra de filosofia pode testar empiricamente o que queremos dizer aqui. Se você já leu, por exemplo, a Crítica da faculdade do juízo, de Immanuel Kant, e se apropriou das contribuições deste texto à discussão estética, então você não se dará por satisfeito com nenhuma discussão sobre filosofia da arte que não seja mais sofisticada – ou que também não leve em consideração – as contribuições de Kant a esta discussão. Um dos problemas deste critério, no entanto, é que na maioria das vezes somente o indivíduo que já conhece algo sobre o tema pode identificar tais opiniões superficiais, ao passo que o “pensador independente”, ignorante daquilo que de melhor já foi dito sobre o tópico, não sabe que ele não sabe.

Poderíamos fornecer ainda vários outros exemplos. É inconcebível uma crítica aos valores morais que não leve em consideração a filosofia de Friedrich Nietzsche, ou uma análise da sociedade capitalista que passe ao largo da obra de Karl Marx. De maneira semelhante, uma contribuição à filosofia da linguagem que ignore o trabalho de Ludwig Wittgenstein ou uma crítica da religião que não dialogue com Ludwig Feuerbach está provavelmente destinada à insignificância. É por isso que a falta de diálogo com a tradição leva não somente a uma tentativa frustrada de reinventar a roda, como também a um tratamento superficial dos temas.

Devemos mencionar ainda outra incompreensão comum relativa ao fazer filosófico: confundir verdade com novidade. Leigos às vezes afirmam que determinado filósofo está “ultrapassado” porque é “do século XIX”, limitando-se a emitir sua opinião sem fundamentá-la com um argumento relevante. Tal postura me parece a tendência capitalista de renovar incessantemente os meios de produção deslocada para a atividade filosófica. A filosofia não deve jamais parar de questionar, pois isso seria sua própria morte. Este questionamento, todavia, deve ser feito em diálogo com a tradição, de modo que a crítica filosófica não pode se submeter aos parâmetros produtivistas característicos da era capitalista. Como Nietzsche afirmava, filosofia se faz com calma, ruminando. Devemos ter a capacidade de distinguir entre o que é exigência do fazer filosófico e o que é exigência da produção capitalista.

Com Nietzsche podemos aprender também sobre o valor de se compreender bem a tradição antes de iniciar um projeto de crítica. Através do personagem Zaratustra, em sua obra Assim falou Zaratustra, o filósofo do martelo considera que o espírito passa por três mutações, ou metamorfoses: primeiro o espírito se torna camelo, depois se torna leão e, por fim, se torna criança.

O camelo representa a primeira fase da humanidade, aquela em que se carrega o peso, o fardo. É quando se tem admiração pelos valores, quando se acredita em ideais e quando se formam os valores morais e culturais. O primeiro procedimento, afirma Nietzsche, é venerar, obedecer e aprender. A primeira fase do próprio Nietzsche foi assim. Ele se ocupou inicialmente dos antigos, venerava os clássicos, o pensamento grego e as realizações do passado. Foi quando ele descobriu, por exemplo, os pré-socráticos, e especialmente Heráclito.

A segunda fase é simbolizada pelo leão. Para alcançar a liberdade, o espírito humano precisa, nesta segunda metamorfose, lutar contra os ideais e as concepções morais de seu tempo. É quando começa a surgir no horizonte a época do espírito livre. Na vida de Nietzsche, esta fase começa com o fim de sua carreira universitária em 1879, com sua vida errante e uma intensa produção intelectual. Ele muda seu estilo literário e passa a escrever em aforismos, e anuncia o colapso de todos os valores: “eu descrevo o que está por vir, e que não pode deixar de vir: o surgimento do niilismo”.

E por último chega-se à terceira fase, a da criança. Esta fase representa um novo começo e a superação do niilismo, e a criança diz “sim!” à vida e ao mundo, aqui e agora. O homem desse novo tempo não tem nenhum deus e nenhum outro homem acima de si e se torna responsável por si mesmo. Ele é um criador que constantemente se supera, é uma passagem e um declínio ao mesmo tempo, como ele mesmo afirma em Assim falou Zaratustra, obra que marca sua própria passagem para esta terceira fase.

Não se pode pular etapas aqui. Nietzsche nos mostra com esta metáfora não apenas seu próprio percurso filosófico, mas como o espírito deve proceder a fim de avançar além de sua época. Tentar eliminar qualquer um destes momentos levará à formação não de um filósofo, mas de um semifilósofo. Theodor Adorno nos mostrou, através de suas reflexões sobre a semicultura, como o a sociedade capitalista tenta incluir no processo de formação todos aqueles que são dela excluídos, mas o resultado não é de fato uma Bildung (uma formação, uma cultura), mas uma Halbbildung (semicultura).

É típico da semicultura destacar unilateralmente apenas o lado brilhante da ciência, da arte ou da filosofia, como estampados nas revistas de divulgação de cada área. A maioria dos leitores não imagina, por exemplo, quanto trabalho, leitura, pesquisa e até mesmo tédio pode estar por trás da descoberta de um fóssil de dinossauro. Como tais publicações só nos mostram os highlights destas áreas, é quase inevitável a ilusão de que o trabalho de um paleontólogo é sempre tão interessante quanto no dia de uma descoberta, ou que o trabalho de um filósofo consiste apenas em desenvolver seu próprio sistema de pensamento. A verdadeira história das grandes descobertas nos mostra algo bem diferente. Quando Immanuel Kant, por exemplo, lançou sua obra-prima, a Crítica da razão pura, ele já contava mais de 50 anos de idade.

Para não deixar dúvidas: a crítica deve estar presente a todo momento. O exemplo de Kant não foi no sentido de que só devemos começar a pensar por conta própria, ou criticar a tradição, depois de décadas de dedicação e estudo. Ler a tradição desta maneira seria contrário ao próprio espírito da filosofia. O que queremos mostrar é tão somente que, sem um conhecimento sólido da tradição, é grande o risco de que aquilo que consideramos nosso próprio pensamento não seja mais do que reinvenção da roda. Ou pelo menos uma discussão superficial de algo já debatido de maneira muito mais profunda anteriormente.

Glauber Ataide

Ouça sobre os este tema em nosso podcast
  

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