Quando alguém afirma que não sou neutro ou imparcial em alguma de minhas análises políticas, minha resposta geralmente é sempre muito simples e direta: “mas você também não é!”. Esta réplica não deve ser entendida, no entanto, como uma falácia tu quoque ou em um sentido moral, como se eu estivesse dizendo que o indivíduo não pode exigir de mim determinado comportamento que ele também não pratica. O objetivo é tão somente deixar claro que a imparcialidade em assuntos políticos não passa de um mito, de uma quimera, de uma ilusão, de uma fantasia. A única maneira realmente consequente de ser neutro é não emitindo opinião política alguma. Uma vez que o indivíduo enuncia qualquer proposição sobre o mundo, seja ela descritiva (dizendo como o mundo é) ou normativa (dizendo como o mundo deveria ser), a quebra de seu silêncio põe fim também à sua imparcialidade.
Ainda existe a figura do “imparcial”?
Cerca de dez anos atrás, ao escrever panfletos sindicais para distribuição em empresas e portas de fábricas, eu geralmente incluía um poema atribuído a Bertolt Brecht chamado O analfabeto político:
O pior analfabeto é o analfabeto político. Ele não ouve, não fala, nem participa dos acontecimentos políticos. Ele não sabe que o custo de vida, o preço do feijão, do peixe, da farinha, do aluguel, do sapato e do remédio dependem das decisões políticas.
O analfabeto político é tão burro que se orgulha e estufa o peito dizendo que odeia a política. Não sabe o imbecil que, da sua ignorância política, nasce a prostituta, o menor abandonado, e o pior de todos os bandidos, que é o político vigarista, pilantra, corrupto e lacaio dos exploradores do povo.
De maneira geral, este poema ressalta a dissociação entre vida prática e decisões políticas, as quais são percebidas como aparentemente desvinculadas da vida dos cidadãos comuns. Este era o retrato fiel de inúmeros trabalhadores que recebiam nossas publicações naquela época.
Este poema se tornou obsoleto em poucos anos. A campanha salarial no ano de 2012, por exemplo, foi completamente atípica em nossa categoria, de modo que nosso sindicato recebeu um contingente totalmente inesperado de trabalhadores nas assembleias. Só alguns anos depois percebemos que estes eram sintomas das jornadas de junho de 2013 que se aproximavam, e embora os trabalhadores não estivessem em nosso sindicato para discutir exatamente política, podia-se perceber uma disposição a “fazer alguma coisa”, a “participar de algo”, embora ainda não se soubesse exatamente o que.
O acirramento da luta de classes nos anos seguintes forçou muitos indivíduos a se posicionar. O cenário político brasileiro se transformou drasticamente a partir de junho de 2013, e a agudização das contradições levou a lutas como já não se viam a muito tempo. O turbilhão político arrastou para seu centro milhões de indivíduos antes apáticos e apolíticos, mas este processo não veio sem contradições: a dinâmica da vida prática avança sempre muito mais rápido que a consciência sobre os eventos, de modo que milhões tomaram posição sem antes se alfabetizar, produzindo a indesejada figura do analfabeto político militante.
Este breve histórico recente é para mostrar por que hoje é cada vez menor o número daqueles que se dizem imparciais. Isso não é dizer, todavia, que indivíduos que se consideram imparciais não existem mais. São cada vez mais raros, mas ainda estão entre nós. O que significa, no entanto, ser imparcial em questões políticas?
A imparcialidade no capitalismo
Imparcialidade quer geralmente dizer justiça. Quando falamos sobre um julgamento, por exemplo, ninguém tem dúvidas de que o melhor juiz é aquele que não toma partido por nenhum dos lados em disputa, e por isso é compreensível que este conceito encontre boa acolhida também em outros contextos. A questão é que a imparcialidade nem sempre deve ser vista como boa, desejável ou mesmo possível.
Vejamos na questão política, por exemplo. Vivemos em uma sociedade capitalista, o que equivale dizer cindida em diversas classes sociais, sendo proletariado e burguesia as duas principais. Há uma enorme variedade de outras classes entre estas protagonistas, tais como a pequena burguesia e o campesinato, mas estas se definem para relação ou proximidade que estabelecem com aquelas duas classes puras, típicas, específicas deste modo de produção.
As classes intermediárias tendem a se enxergar como mediadoras. Em seu Dezoito Brumário de Luís Bonaparte, Karl Marx afirma que a pequena burguesia, enquanto classe de transição em que os interesses das duas outras classes se enfraquecem simultaneamente, se sentirá sempre “acima da oposição de classes em geral”, e tentará sempre “harmonizar” o conflito entre as classes principais, assim como o campesinato. Sua própria situação social concreta alimenta a ilusão de imparcialidade.
Uma análise mais atenta revela a inconsistência de sua posição. Em seu artigo O partido socialista e o revolucionarismo sem cunho partidário, Lênin reflete sobre os diversos movimentos “não-partidários” da Revolução de 1905 e mostra que o não-partidarismo, na verdade, é apenas aparente. Mostraremos também que a diferença entre imparcial e apartidário é mínima neste caso, de modo que as reflexões do revolucionário russo são adequadas também para a presente discussão.
Lênin afirma que em uma “sociedade baseada na divisão em classes, a luta entre as classes inimigas torna-se inevitavelmente, num certo grau do seu desenvolvimento, uma luta política. A expressão mais integral, completa e acabada da luta política das classes é a luta dos partidos.” Este é o primeiro ponto chave para se compreender a questão: os partidos são representações de classes sociais, de modo que deve-se sempre perguntar que classe social determinado partido representa.
O chamado “não-partidarismo”, segundo Lênin, é a indiferença em relação à luta dos partidos. Isso não é o mesmo que neutralidade, ou abstenção na luta em curso entre as classes sociais e os partidos que as representam, pois é impossível haver neutros na luta de classes. Ninguém pode se abster, na sociedade capitalista, de participar na troca de produtos ou de força de trabalho. Se o indivíduo olhar para si mesmo irá perceber que a roupa que está vestindo não foi produzida por ele mesmo, mas foi adquirida em relação de troca, como comprando em uma loja, por exemplo. A troca de mercadorias pressupõe obviamente sua produção, e esta se dá em uma relação entre capital e trabalho, na qual a exploração da força de trabalho gera as lutas econômica e a política.
A indiferença em relação à luta, afirma Lênin, não significa afastamento da luta, “abstenção dela ou neutralidade”, de modo que a indiferença é um apoio tácito àquele que é forte, àquele que domina. Quando o indivíduo se declara “imparcial” em uma sociedade capitalista, ele quer dizer que há justiça na relação de exploração entre capitalista e operário, de modo que sua neutralidade não passa de uma adesão silenciosa ao partido de quem está vencendo.
Lênin remonta a neutralidade às suas raízes sociais:
“a indiferença política não é outra coisa senão a saciedade política. Aquele que está farto é ‘indiferente’ e ‘insensível’ diante do problema do pão de cada dia; porém o faminto será sempre um homem ‘de partido’ nesta questão. A ‘indiferença e insensibilidade’ de uma pessoa diante do problema do pão de cada dia não significa que não necessite de pão, mas que o tem sempre garantido, que nunca precisa dele, que se acomodou bem no ‘partido’ dos que estão empanturrados, o partido dos que dominam, o partido dos exploradores” .
A única forma de ser imparcial em uma sociedade capitalista é não fazendo parte dela. Se o indivíduo se mantém vivo no capitalismo, isso significa que ele se alimenta, mora em algum lugar e também se veste, e para tais atos básicos ele precisa estabelecer uma relação de troca. Se ele sempre tem seu pão, ele o obtém através da troca de seu dinheiro por tal mercadoria, e suas moedas são conquistadas através de seu trabalho. Se ele trabalha, isso significa que sua atividade tem valor social para alguém, de modo que tal indivíduo, em sua vida prática, é marcado por relações sociais, mas ao se afirmar politicamente “imparcial”, ele faz de conta que vive isolado.
A própria situação social também nos obriga a tomar partido. É por isso que Lênin afirma que o faminto nunca é indiferente, ele sempre é um homem ou mulher de partido, que precisa tomar posição. A imparcialidade política é um luxo possível somente àqueles que sempre possuem suas refeições garantidas, e quer o indivíduo reconheça ou não, sua situação social lhe coloca no partido dos saciados. Sua contribuição política militante ao partido dos exploradores é justamente o seu silêncio, sua não-interferência na luta de classes, de modo que sua imparcialidade se revela dialeticamente como parcial. Nas palavras de Lênin: “O sem-partidarismo na sociedade burguesa é apenas a expressão hipócrita, encoberta, passiva, do facto de se pertencer ao partido dos saciados, ao partido dos dominantes, ao partido dos exploradores.”
Todo ponto de vista é visto a partir de um ponto. Se estamos dentro de um barco em movimento e olhamos para nossos pés, temos a percepção de que estamos parados, pois nossa velocidade e a do barco é a mesma. Se olhamos para fora, no entanto, e vemos uma praia, conseguimos perceber então nosso próprio movimento, pois tal observação tem outro ponto de referência. Situação semelhante também ocorre quando estamos em uma rodovia a 100 km/h e somos ultrapassados por um carro a 120 km/h. Parece que o veículo ao nosso lado se move lentamente, mas isso se deve ao fato de que ao subtrair a velocidade de ambos os carros, a diferença é de apenas 20 km/h. Tais exemplos são apenas para ilustrar o fato de que é impossível observar qualquer coisa neste mundo sem estarmos ao mesmo tempo em um determinado ponto, e o mesmo se aplica também em questões políticas.
Dizer-se imparcial em uma sociedade capitalista equivale a negar fazer parte deste mundo. A imparcialidade é um desejo pela perspectiva divina, pois apenas a mente de um deus, externa à nossa efetividade, poderia de fato se colocar em tal posição. Pretender-se imparcial no capitalismo significa negar haver sobre nós quaisquer influências da vida, dos familiares, dos vizinhos, dos colegas de escola, de trabalho, da televisão, dos livros, das músicas, etc. Significa arrogar-se como o sujeito cartesiano, totalmente consciente e dono de si, de sua verdade, sem perceber que grande parte do que somos e fazemos tem origem em determinações inconscientes.
O mito da imparcialidade tem determinações sociais. Como afirma Lênin, “o sem-partidarismo é uma ideia burguesa”, e “quem consciente ou inconscientemente está ao lado da ordem burguesa não pode deixar de sentir atracção pela ideia de sem-partidarismo.” A pergunta simples que devemos nos colocar é a seguinte: na luta entre burguesia e proletariado, a quem interessa a neutralidade, a imparcialidade? E a resposta é óbvia: tal ideologia favorece apenas a classe que já domina.
Dizer que não há imparcialidade, todavia, não é o fim do diálogo. Tal constatação não nos desobriga a dar sempre a melhor interpretação possível a qualquer autor ou ponto de vista com o qual nos deparamos, e isso é chamado de complacência hermenêutica. A consciência de que ninguém é imparcial deve apenas nos deixar mais alertas quanto às opiniões tanto alheias quanto às nossas. Diante de um pensamento contrário, devemos sempre nos esforçar para interpretar tal posição sob o melhor ângulo e luz possíveis, deixando os argumentos adversários tão fortes quanto em sua melhor versão, e apenas depois de compreendê-los é que iniciamos o trabalho de crítica – pois criticar pressupõe compreender. É verdade que a maioria dos indivíduos não age assim, mas tal atitude faz parte da honestidade intelectual de quem aspira à filosofia.
Glauber Ataide
Referências
MARX, Karl. Der achtzehnte Brumaire des Louis Bonaparte. In: Marx Engels Werke. Band 8, p. 144. Berlin: Dietz Verlag, 1977.
LENIN, V.I. O partido socialista e o revolucionarismo sem cunho partidário. In: Sobre os sindicatos. São Paulo: Editorial Livramento, 1979.
LÉNINE, V.I. O Partido socialista e o revolucionarismo sem partido. In: LÉNINE, V.I., Obras escolhidas em seis tomos. Tomo I. Lisboa: Edições “Avante!”, 1984.
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