Jornadas de junho: análise da falsa consciência nas manifestações


Se há um ponto claro, pouco controverso ou talvez até mesmo consensual sobre as jornadas de junho é que elas realmente não foram apenas por "vinte centavos". As múltiplas, variadas e descentralizadas reivindicações dos mais diversos setores sociais que compuseram este fenômeno, ao invés de esclarecer, parecem, ao contrário, encobrir, dificultar, disfarçar os motivos reais que acredita-se estarem por trás daqueles exibidos nos cartazes.

A tese de que haveria um sentido mais profundo, velado, subjacente e determinante do que se revelou na superfície das manifestações nos remete a Karl Marx e Sigmund Freud, chamados por Paul Ricoeur de "mestres da suspeita", ou mestres da "escola da suspeição" . Para o filósofo francês, o que se pode encontrar de comum nas obras de ambos são procedimentos de desmistificação. Tanto Marx quanto Freud partem de uma suspeita em relação às ilusões da consciência, tomada em sua totalidade como "falsa consciência", e então empregam o estratagema de tentar decifrá-las. O que pretendemos fazer nas linhas que se seguem vai neste sentido: primeiro tentaremos caracterizar os motivos aparentes das jornadas de junho como mera manifestação de uma falsa consciência e, em seguida, sugerir onde suas reais causas poderiam ser investigadas.

A falsa consciência nos movimentos históricos

Friedrich Engels afirma que à medida que cada indivíduo age em busca de seus próprios fins conscientes, o resultante das mais diversas direções e vontades atuantes e seus múltiplos efeitos sobre o mundo exterior é o que chamamos de história . Neste processo há que se investigar também, continua Engels, o que esses muitos indivíduos querem. A vontade é determinada por paixões e raciocínios, mas aquilo que, por sua vez, imediatamente determinará as paixões e os raciocínios são dos mais diversos tipos, podendo ser objetos externos, motivos ideológicos, ambição, "ardor pela verdade e pela justiça", ódio pessoal ou meros caprichos dos mais diversos tipos .

Não obstante os homens agirem por motivações conscientes, afirma Engels, as vontades individuais produzem, na maioria das vezes, resultados distintos, e frequentemente até mesmo opostos aos desejados, de tal maneira que as motivações têm, para o resultado final, uma importância secundária, subordinada (untergeordneter). Resta saber quais são as forças motrizes por trás dessas motivações, quais foram as causas históricas que tomaram exatamente tais formas conscientes nas cabeças dos agentes. Tudo o que os homens colocam em movimento deve passar por suas cabeças, isso é certo; mas qual forma isso toma em suas consciências dependerá muito das circunstâncias .

O desenvolvimento histórico não seria, contudo, imprevisível e irracional, mas possuiria o que Andrew Feenberg chama de "racionalidade específica" , a qual refletiria uma "regularidade estatística gerada pelas consequências casuais das interações das vontades individuais em conflito". É como se a história possuísse um telos, mas não de um tipo que pudesse ser determinado a priori, mas apenas construído a posteriori pelo historiador. A relação entre a consciência dos indivíduos e os resultados alcançados em suas práticas históricas seria de tal maneira que, embora os indivíduos façam sua própria história, eles a fazem com ilusões, e o resultado de suas ações raramente corresponde às suas expectativas. O locus da racionalidade não poderia mais ser identificado no pensamento dos indivíduos, como tem sido na filosofia moderna desde Descartes, mas sim nos atos . As jornadas de junho, neste sentido, teriam uma racionalidade histórica própria, cuja explicação não deve ser buscada nas motivações conscientes de seus agentes.

As jornadas de junho como movimento histórico

Alguns dos padrões, das características e das regularidades observadas por Engels nos processos históricos podem ser identificados também nas jornadas de junho. Seja no âmbito das motivações individuais (como o “ardor pela verdade e pela justiça”, expresso nos cartazes que denunciavam a corrupção), seja no fato de que as manifestações acabaram tendo, a longo prazo, um efeito contrário ao desejado por várias camadas sociais que compuseram as jornadas (como, por exemplo, levando ao poder um governo muito mais comprometido em casos de corrupção do que o anterior), estamos diante de um evento histórico cujo telos vem ganhando forma à medida que lhe concatenamos e tomamos distância temporal da ação. A famosa passagem em que Hegel afirma que a coruja de Minerva só levanta voo ao entardecer pretende ilustrar justamente este ponto: o ser precede o pensamento, sendo possível refletir sobre os eventos históricos apenas em seu crepúsculo, depois de passados os fatos .

Neste sentido, foi apenas com as manifestações dos anos seguintes que o caráter policlassista das jornadas de junho tomou, retrospectivamente, contornos mais nítidos. Se várias classes sociais compartilharam as mesmas ruas e avenidas em junho de 2013, as manifestações dos anos seguintes, a favor e contra o impeachment da presidente Dilma Rousseff, traçaram uma clara linha demarcatória entre campos políticos que se encontravam acidentalmente juntos durante as jornadas. Um exemplo é que as jornadas de junho contaram com a presença da maior central sindical da América Latina, a CUT, ao mesmo tempo em que teve o apoio da máxima representante da burguesia nacional, a FIESP. À medida, contudo, que as divergências de interesses foram se tornando mais claras no decorrer das disputas políticas e econômicas em torno do impeachment de Dilma, as manifestações se polarizaram e cada uma dessas entidades encabeçava um dos campos: a CUT, representando os interesses dos trabalhadores, e a FIESP, as ambições do capital.

Essa tomada de consciência de tais divergências de interesses parece sinalizar um amadurecimento da compreensão do que estava em jogo nas manifestações, e um ponto privilegiado de observação de tal processo é a progressiva tolerância aos partidos políticos nas manifestações após 2013. Para ajudar a compreender o forte caráter não apenas apartidário, mas até mesmo antipartidário das jornadas de junho, nos apoiamos nas análises de Lenin sobre as manifestações sem cunho partidário que se alastraram também pela Rússia durante a revolução de 1905. O teórico russo observou que o número infinito de reivindicações, exigências e doléances (queixas) ali formuladas eram reivindicações que não possuíam exatamente caráter de classe, constituindo-se como exigências de sentido fundamentalmente jurídico, plenamente realizáveis nos limites do capitalismo . As abstratas reivindicações das jornadas de junho, tais como por “mais saúde” ou “mais educação” – que não encontram divergência em nenhum lado, pois ninguém é contra tais coisas – é um dos pontos de contato que nos sugerem a presença de certo padrão ou de certa lógica entre ambos os movimentos e que nos permite compará-los.

Como um ilustre discípulo da escola da suspeição, Lenin afirma que o selo da independência externa em relação aos partidos tinha naquele processo apenas a “aparência” da falta de filiação partidária. A necessidade de uma vida mais “humana”, da defesa da própria dignidade e dos direitos do cidadão são geralmente bandeiras que abarcam tudo e todos, que agrupam todas as classes e diminuem qualquer limite partidário. A premência de conquistar vitórias imediatas relega a segundo plano qualquer ideia e pensamento sobre o que virá mais tarde .

Para Lenin, “a posição negativa diante dos partidos na sociedade burguesa não é senão uma expressão hipócrita, velada e passiva de quem pertence ao partido dos que dominam”. Para o revolucionário russo, 

“a indiferença política não é outra coisa senão a saciedade política. Aquele que está farto é ‘indiferente’ e ‘insensível’ diante do problema do pão de cada dia; porém o faminto será sempre um homem ‘de partido’ nesta questão. A ‘indiferença e insensibilidade’ de uma pessoa diante do problema do pão de cada dia não significa que não necessite de pão, mas que o tem sempre garantido, que nunca precisa dele, que se acomodou bem no ‘partido’ dos que estão empanturrados, o partido dos que dominam, o partido dos exploradores” .

O que os desenvolvimentos da revolução de 1905 e das jornadas de junho apresentam em comum – e aqui levamos em conta todas as diferenças e particularidades históricas, geográficas e políticas - é uma definição, uma delimitação de campos, uma agudização das contradições que eram apenas latentes nos primeiros estágios dos movimentos. Se em junho de 2013 houve até mesmo agressões a manifestantes que portavam bandeiras ou vestiam camisas de partidos de esquerda, nas manifestações posteriores pelo impeachment de Dilma Rousseff houve uma maior tolerância aos partidos de direita, enquanto que nas manifestações contrárias ao golpe os partidos de esquerda não encontraram problemas em participar nem da organização, nem da execução dos atos.

Esta transição, esta passagem, este desenvolvimento gradual do elemento inconsciente ao consciente, das manifestações espontâneas às organizadas, significa, para Lenin, que “o ‘elemento espontâneo’ não é senão a forma embrionária do consciente”. Os motins primitivos dos operários, por exemplo, nos quais os trabalhadores quebravam as máquinas das fábricas, já refletiam certo despertar do consciente. Não que os operários, continua Lenin, começavam a compreender a necessidade de opor resistência ao capital, mas pelo menos sentiam isso, e perdiam a fé na inamovibilidade da ordem de coisas que os oprimia . As jornadas de junho também foram movimentos espontâneos, no sentido de que não foram preparados, organizados, planejados de forma consciente por nenhuma força política, organização ou movimento social, sendo possível considerá-las a forma embrionária dos movimentos posteriores que apresentaram um grau mais desenvolvido de consciência de interesses políticos.

Esta também foi a dinâmica de vários movimentos de protesto que se alastraram por diversos pontos do globo nos primeiros anos da crise capitalista iniciada em 2008. A partir do final de 2010, o norte da África foi tomado por diversas manifestações, revoltas e revoluções populares que se espalharam por mais de quinze países, as quais receberam o nome de Primavera Árabe. Na Espanha, o Movimento dos Indignados ocupou, a partir de maio de 2011, a Praça do Sol, em Madri, com milhares de jovens permanecendo acampados por vários meses. A Espanha se encontrava em profunda recessão, com o índice de desemprego entre os jovens em 43,5% em abril daquele ano . O ponto de partida dos protestos, em quase todos os casos, foram movimentos espontâneos que, aos poucos, aglutinaram forças políticas que ajudaram a dar contorno a uma massa inicialmente informe e a infundir um maior grau de consciência às ações já em curso. As jornadas de junho, quando colocadas em uma perspectiva internacional, fazem parte de um processo, de uma dinâmica, de um desenrolar histórico mais amplo, e não nos precipitamos ao afirmar que sofreram certa influência desta avalanche de manifestações ocorridas no exterior. Lenin já havia observado este efeito contagiante nas greves, afirmando que “basta que se declare em greve uma fábrica para que imediatamente comece uma série de greves em muitas outras fábricas” . Este efeito multiplicador que podemos, por extensão, atribuir aos movimentos de protestos em geral foi assim resumido por um certo ministro alemão, inimigo dos trabalhadores e citado por Lenin: “Por trás de cada greve aflora a Hidra da revolução” .

Esta influência externa, contudo, não seria suficiente para explicar as jornadas de junho se no Brasil também já não despontassem os primeiros sintomas da grave crise mundial do sistema capitalista. Em 2013, o então ministro da fazenda Guido Mantega admitiu que o País vivia uma “minicrise”, sendo que aquele era, até então, o segundo pior ano desde o início da recessão, só perdendo para 2009. A situação econômica brasileira entrou, mesmo com certo atraso, em sintonia com a dos principais países da Europa, o que nos sugere que entre as principais forças motrizes subjacentes às jornadas de junho estiveram presentes as mesmas que impulsionaram as manifestações nos outros países: a grave crise econômica do sistema capitalista. As reivindicações conscientes dos movimentos nos diversos países não dão conta de explicar por que todos eles aconteceram de forma quase simultânea. O que todos apresentam em comum, contudo, é o contexto econômico de recessão, de crise do capital, e nos parece residir aí as forças motrizes que, em cada país, assumiram as mais diversas formas nas cabeças dos indivíduos, produzindo uma falsa consciência.

As ações individuais nos movimentos históricos, segundo Feenberg, não apenas executam um telos contido em um pensamento. No caso da falsa consciência, a ação busca um resultado que é oculto, inacessível, encoberto ao próprio agente. O alvo consciente do agente é uma ilusão que serve para motivar um ato histórico necessário sem compreendê-lo , e é para um mecanismo psíquico responsável por formar tais tipos de ilusões na consciência que nos voltaremos agora.

A produção da falsa consciência no indivíduo: a racionalização

Todas as supostas razões que levaram cada indivíduo às ruas em 2013 já estavam presentes nos anos anteriores. Seja a corrupção, seja o aumento das tarifas de ônibus e metrô ou a falta de investimento em saúde e educação, nada disso era novidade naquele mês de junho. Na verdade, em questões como educação, por exemplo, a situação no período imediatamente anterior ao início dos protestos era até mais favorável em comparação com a dos governos anteriores do PSDB. As classes sociais que encabeçavam as jornadas e davam a tônica dos protestos pareciam refratárias a todos os programas sociais dos governos do PT que indiscutivelmente trouxeram melhorias – mesmo que tímidas – à vida dos mais pobres. O desafio, portanto, é tentar compreender por que as mobilizações tiveram início naquele momento, e não antes ou depois. O estopim de todo o processo, que foram as mobilizações do Movimento Passe Livre, em São Paulo, também não era nenhuma novidade. Movimentos de esquerda sempre estiveram presentes nas ruas com as mesmas pautas.

As motivações conscientes que levam os indivíduos à ação nos processos históricos são espécies de "razões encobridoras", análogas ao que é denominado na psicanálise de racionalização. Segundo Ernest Jones, a ideia aparentemente simples de Freud de que um grande número de processos mentais deve sua origem a causas desconhecidas e insuspeitas aos indivíduos, sejam eles normais ou neuróticos, é uma das descobertas mais significativas não apenas para a psicanálise, mas também para ciências como a sociologia .

A racionalização se origina, segundo Jones, do sentimento de uma necessidade de sempre se fornecer uma explicação. A fonte desta necessidade, por sua vez, é apenas outro aspecto da necessidade que todos têm em possuir o que pode ser chamado de uma teoria da vida e, especialmente, uma teoria de si mesmo. Todos sentem, continua o biógrafo de Freud, que devem ser capazes, como criaturas racionais, de fornecer explicações lógicas, conectadas e contínuas sobre si próprios, sobre suas condutas e opiniões, e todos os seus processos mentais são inconscientemente manipulados e revisados para este fim. Ninguém admitirá que jamais cometeu deliberadamente um ato irracional, e qualquer ato que possa parecer assim é imediatamente justificado distorcendo os processos mentais envolvidos e fornecendo uma falsa explicação que possa soar minimamente racional .

Um aspecto deste processo que pode nos ajudar a compreender o efeito multiplicador de certas razões encobridoras dentro de determinados círculos, classes ou grupos sociais é que tais justificativas, segundo Ernest Jones, guardam relação especial com as opiniões predominantes do círculo de pessoas mais significantes ao indivíduo . A influência do ambiente pode inculcar nele um determinado conjunto de crenças de uma maneira indireta, elevando o padrão de aceitabilidade dos argumentos usados em favor de um ponto de vista ao qual ele já está predisposto a aderir. O círculo social faz tais razões encobridoras parecerem mais sensatas e racionais ao indivíduo .

Dizendo de outra forma, a racionalização é o processo pelo qual um indivíduo oferece uma justificação lógica ou moral para uma atitude cujos motivos inconscientes são inacessíveis, sendo uma forma de evitar reconhecer conflitos, sejam eles de natureza neurótica ou não. Um exemplo de racionalização seria quando um indivíduo, para justificar uma mania de limpeza compulsiva, sempre oferece razões sanitárias para mascará-la . As bandeiras contra a “corrupção”, flamuladas tanto nas jornadas de junho quanto nos protestos pelo impeachment de Dilma Rousseff, parecem ser algo neste sentido. Todo o fervor militante, a convicção moral e o ardor contra a corrupção se dissiparam tão logo Dilma foi afastada definitivamente do cargo, sugerindo que a questão talvez nunca tenha sido realmente a corrupção, a qual era apenas uma racionalização de motivos mais profundos, ocultos, inconfessáveis.

O ódio pessoal, um dos componentes que, segundo Engels, também pode levar indivíduos a tomar parte em processos históricos, se em alguns momentos se expressa de forma aberta e declarada, em outros pode ser detectado, decifrado, interpretado apenas sob análise. Diante de um conflito do eu (ich) em reconhecer como aceitável o puro ódio como motivação para tomar parte em um protesto político, a racionalização torna admissível, suportável e encoberto ao indivíduo este determinante da vontade. A racionalização é um dos processos psíquicos que pode responder pela formação de uma falsa consciência em movimentos históricos. Ela também é capaz de ocultar do indivíduo a origem de sua satisfação narcísica ao participar de amplos movimentos de massas que, através do mecanismo de identificação, lhe tornam parte de um todo maior que seu ego empobrecido, um todo ao qual o indivíduo se integra e do qual acredita compartilhar atributos que lhe faltam.

Conclusão

Neste artigo tentamos oferecer uma análise das jornadas de junho como dotadas de uma racionalidade histórica própria, apontando características que lhes permitem ser classificadas, identificadas, comparadas com outros movimentos históricos e caracterizar os motivos aparentes dos protestos como determinados por uma falsa consciência. Sugerimos, ademais, que o processo de racionalização, como definido na psicanálise, pode ajudar a esclarecer o mecanismo em jogo nos indivíduos para a formação dessa falsa consciência. A partir dos desdobramentos das jornadas de junho, nos quais cristalizaram-se campos políticos opostos, polarizados, partidarizados e mais bem definidos, sugerimos também que as contradições entre capital e trabalho, afloradas neste novo momento, encontravam-se latentes em junho de 2013, período em que a grave crise mundial do sistema capitalista já dava seus primeiros sintomas na economia brasileira.

A racionalidade do comportamento histórico, segundo Feenberg, não é em sua totalidade uma função da racionalidade de seus motivos conscientes, mas sim dos atos, da prática, do fazer. A mesma necessidade histórica à que se atribui o surgimento da falsa consciência é também responsável por motivar práticas que exibem uma racionalidade específica muito maior que seus motivos aparentes. O locus da racionalidade das jornadas de junho deve ser buscado, neste sentido, em sua própria historicidade, em sua própria imanência e na função que desempenhou quando as tomamos retrospectivamente como entroncamento das batalhas que lhes seguiram .

A demarcação mais clara, o traçado mais nítido delineado entre os campos políticos a partir das jornadas de junho sugere que as contradições que naquele momento emergiram com maior ou menor clareza a nível de consciência já se encontravam presentes, ainda que de forma latente, por volta de junho de 2013. Segundo Lenin, “numa sociedade baseada em classes, a luta entre as classes hostis converte-se, de maneira infalível, numa determinada fase de seu desenvolvimento, em luta política”, sendo a luta entre partidos políticos “a expressão mais perfeita, completa e acabada da luta política entre as classes” . Não por acaso diversos líderes do Movimento Brasil Livre (MBL), que se dizia “apartidário”, se filiaram posteriormente a partidos de direita para disputar as eleições.

Em sua análise sobre as guerras camponesas alemãs do século XVI, Engels critica os ideólogos crédulos ou ingênuos (leichtgläubig) que viam naquele período apenas querelas religiosas, tomando o juízo de uma época sobre si mesma em seu valor de face  .Estes ideólogos, que também viam na revolução francesa de 1789 apenas um debate mais acalorado sobre as vantagens da monarquia constitucional sobre a monarquia absoluta, eram incapazes de perceber, afirma Engels, que nas guerras camponesas tratava-se fundamentalmente de interesses de classes, os quais apareciam à consciência, contudo, em sua forma religiosa devido às circunstâncias da época.

O que essa observação de Engels sugere para a análise das relações entre a atividade política dos indivíduos e sua consciência em relação a estes atos é que em uma sociedade secularizada outras formas de consciência serão produzidas através de diferentes mediações. As ideias dominantes de uma época são sempre as ideias da classe dominante daquela época: assim como no período de Münzer a ideologia dominante ainda era aquela produzida pela igreja, em uma sociedade capitalista secularizada será a ideologia burguesa – e tomamos aqui “ideologia” no sentido marxista clássico de falsa consciência – que fornecerá essas mediações. Todo movimento espontâneo, segundo Lenin, conduz precisamente à supremacia da ideologia burguesa, e isso pela simples razão de que a ideologia burguesa, entre outros motivos, possui “meios de difusão incomparavelmente mais poderosos” . Isso pode nos ajudar a compreender por qual razão os desdobramentos das jornadas de junho, ao invés de aprofundarem a democracia e os programas sociais, resultaram em um golpe de estado parlamentar.

Glauber Ataide

* Este artigo foi publicado originalmente no livro O que resta das jornadas de junho, o qual pode ser baixado gratuitamente aqui.

REFERÊNCIAS

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ENGELS, Friedrich. Ludwig Feuerbach und der Ausgang der klassischen deutschen Philosophie. In: Karl Marx-Friedrich Engels Werke: Band 21. Berlin: Dietz Verlag Berlin, 1962.

______. Der deutsche Bauernkrieg. In: Karl Marx-Friedrich Engels Werke: Band 7. Berlin: Dietz Verlag Berlin, 1960.

FEENBERG, Andrew. Lukács, Marx and the sources of critical theory. Oxford: Oxford University Press, 1986.

JONES, Ernest. Rationalization in every-day life. The Journal of Abnormal Psychology, Washington D.C., Vol 3(3), Aug-Sep 1908, 161-169, p. 161.

LENIN, V.I. O partido socialista e o revolucionarismo sem cunho partidário. In: Sobre os sindicatos. São Paulo: Editorial Livramento, 1979.

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RICOEUR, Paul. Freud and Philosophy: An Essay on Interpretation. New Haven and London: Yale University Press, 1970.

ZIZEK, Slavoj. Less than nothing: Hegel and the shadow of dialectical materialism. London: Verso Books, 2012.

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