A misologia, ou o ódio à razão

Misologia é um termo criado por Platão para indicar o ódio à razão, ou o ódio aos raciocínios. Segundo o discípulo de Sócrates, "a misologia nasce da mesma forma que a misantropia" (Fédon, 89 d-90 b). Assim como a misantropia nasce de se ter confiado em alguém sem discernimento, a misologia nasce de se ter acreditado, sem possuir a arte do raciocínio, na verdade de raciocínios que depois se mostraram falsos. A misologia se originaria de uma "desilusão" com a capacidade da razão.

No texto em questão, Sócrates, esperando em sua cela o momento de sua morte e conversando com alguns visitantes sobre a imortalidade da alma, adverte sobre o perigo da misologia, fazendo uma analogia entre esta e a misantropia, ou o ódio aos seres humanos. O que esta passagem parece sugerir é que, do ponto de vista moral, o ódio à razão seria tão condenável quanto o ódio às pessoas:


— Mas, antes, tomemos cuidado para que não nos venha a acontecer um desastre.
— Qual? — perguntei.
— O de nos transformarmos em inimigos da ciência [logos], em misólogos, assim como há alguns que se convertem em inimigos dos homens, em misantropos; pois não há maior mal do que tornar-se inimigo da ciência. Aliás, desenvolvem-se do mesmo modo tanto o ódio à ciência como o ódio aos homens. O ódio aos homens, a misantropia, penetra nos corações quando confiamos demais numa pessoa, sem nos acautelarmos; quando acreditamos que uma pessoa é boa, sincera, honesta, e vimos a descobrir mais tarde que tal não é, que pelo contrário é má, desonesta e mentirosa; e se isso acontecer repetidas vezes a um mesmo homem, e justamente a propósito daquelas pessoas a quem considerava como seus melhores e mais sinceros amigos, esse passará finalmente a odiar todos os homens, persuadido de que em ninguém há de encontrar a menor qualidade boa. Acaso não notaste que, efetivamente, as coisas se passam dessa forma?
— Sim — respondi —, justamente desse modo.
[...]
— ... uma pessoa, que desconhece a arte de provar por argumentos, se entrega com cega confiança a um argumento que lhe parece verdadeiro; pouco depois, este passa a lhe parecer falso.
[...]
Mas não seria deplorável desgraça, Fédon, quando existe um argumento verdadeiro, sólido, suscetível de ser compreendido, que, — aqueles que se puseram a ouvir argumentos que ora são verdadeiros e ora são falsos — que aqueles mesmos, em lugar de acusarem as suas próprias dúvidas ou a sua falta de arte, lancem toda a culpa na própria razão e passem toda a vida a caluniá-la e odiá-la, privando-se, desse modo, da verdade dos seres e da ciência?
— Por Zeus! — disse eu — isso seria, com efeito, um lamentável desastre!
— Ora pois — volveu Sócrates — tomemos cuidado para que não venha a penetrar em nossas almas o pensamento de que nos argumentos nada há de razoável. Suponhamos sempre, ao contrário, que nós é que não temos ainda bastante discernimento. Devemos, com efeito, ser corajosos e fazer tudo o que for necessário para obter os conhecimentos verdadeiros — tu e os outros, porque ainda vivereis bastante, eu simplesmente porque vou morrer. Pois estou exposto, visto que se trata apenas da morte, a não me comportar como filósofo mas sim à maneira dos homens completamente iletrados, que só pensam em levar a melhor. Repara quando discutem um problema: não se preocupam em absoluto com obter a solução certa, mas o que desejam é unicamente conseguir que todos os ouvintes estejam de acordo com eles.


Na continuação do texto, as críticas que Sócrates fará à misologia são de cunho moral, classificando-a como "vergonhosa", "perversa", e algo contra o qual devemos nos prevenir. Para o filósofo de Atenas, seremos pessoas menos excelentes se passarmos a desprezar os argumentos como capazes de levar à verdade. A misologia, como Sócrates a compreende, é uma reação emocional à argumentação por parte de pessoas que não possuem as habilidades lógicas dialéticas ou a vontade de distinguir entre bons e maus argumentos.

O tema da misologia recebeu também a atenção, séculos mais tarde, de Kant, em sua obra Fundamentos da metafísica dos costumes. A misologia nasce, segundo o filósofo de Königsberg, quando se confia à razão a tarefa de obter "a fruição da vida e a felicidade", tarefa para a qual ela não está apta, uma vez que seu destino, como faculdade prática, é conduzir à moralidade" (Grundlegung der Metaphysik der Sitten, I).

Poucos anos mais tarde, a misologia foi brevemente mencionada também por Hegel em sua Enciclopédia das ciências filosóficas. Hegel relaciona o ódio à razão ao saber imediato:

Die Einsicht, daß die Natur des Denkens selbst die Dialektik ist, daß es als Verstand in das Negative seiner selbst, in den Widerspruch geraten muß, macht eine Hauptseite der Logik aus. Das Denken, verzweifelnd, aus sich auch die Auflösung des Widerspruchs, in den es sich selbst gesetzt, leisten zu können, kehrt zu den Auflösungen und Beruhigungen zurück, welche dem Geiste in anderen seiner Weisen und Formen zuteil geworden sind. Das Denken hätte jedoch bei dieser Rückkehr nicht nötig, in die Misologie zu verfallen, von welcher Platon bereits die Erfahrung vor sich gehabt hat, und sich polemisch gegen sich selbst zu benehmen, wie dies in der Behauptung des sogenannten unmittelbaren Wissens als der ausschließenden Form des Bewußtseins der Wahrheit geschieht.

Traduzo:

O ponto de vista de que a natureza do próprio pensar é a dialética, que ele, enquanto entendimento no negativo de si mesmo, deve ser levado à contradição, constitui uma parte principal da Lógica. O pensamento, desesperado para poder resolver fora de si a solução da contradição na qual é colocada, se volta para soluções e pacificações, das quais ao Espírito, em outras formas, em parte se tornou. Neste retorno o pensamento não teria, no entanto, que cair na misologia, da qual Platão já tinha tido a experiência, e se comportar polemicamente contra si mesma, como se passa na afirmação do chamado saber imediato como exclusiva forma de consciência da verdade.

O saber imediato é o saber que corresponde, por exemplo, à fé em Deus. É um saber que, ao contrário do saber mediado, afasta todas as dependências, os condicionamentos, as determinações, a forma da reflexão. O saber imediato não considera as diferenças, as interdependências, mas apenas a forma subjetiva, apenas o "isso é".

O pensamento, diante das contradições que lhe são colocadas pela própria natureza de sua atividade, busca, inicialmente, um retorno a formas anteriores nas quais essas contradições ainda não estavam colocadas. Diante de posições entre as quais não consegue decidir, o pensamento fica desesperado. É interessante o termo alemão utilizado neste trecho para "desesperado", que é verzweifelnd. A raiz deste adjetivo é zwei, que significa "dois". O desespero, neste sentido, vem sempre da incapacidade de decidir, de escolher, de tomar uma decisão,e por isso a consciência tenta acabar com este conflito retornando para um momento anterior em que o conflito não existia. Este movimento de retorno, contudo, não precisa necessariamente desaguar no ódio à razão em geral, afirma Hegel. O pensamento é essencialmente dialético, contraditório, e a misologia seria uma fuga e uma revolta contra a própria natureza do pensar.

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