Immanuel Kant e sua resposta à pergunta: "O que é o esclarecimento?"

Desde Platão e Aristóteles, nenhum filósofo havia se ocupado de maneira tão profunda e inovativa sobre tantos temas quanto Immanuel Kant. O filósofo de Königsberg desmantelou a metafísica tradicional e fundou uma nova, formulou o hoje famoso categórico imperativo e também antecipou o cosmopolitismo e a ideia moderna de dignidade do homem. Suas ideias influenciaram a constituição alemã e até mesmo a fundação das Nações Unidas.

A filosofia de Kant ainda hoje tem muito a nos dizer. Suas reflexões sobre democracia e paz, beleza e natureza, sua fundamentação da moral e do direito e suas investigações sobre os limites da razão humana são mais atuais que nunca. Em um mundo no qual a democracia e a paz estão cada vez mais ameaçadas; no qual a natureza é cada vez mais destruída pelo caráter predatório da fase imperialista do capitalismo; e no qual a indústria cultural apoia-se no relativismo pós-moderno para justificar a barbárie estética, Kant é um filósofo que pode nos apontar uma direção em meio ao caos.

Apresentaremos a seguir algumas das principais ideias de seu breve texto intitulado Resposta à pergunta: o que é o esclarecimento?, para depois fazer um balanço crítico baseado nas observações de de Theodor Adorno e Max Horkheimer em sua obra Dialética do esclarecimento, tendo em vista o pano de fundo histórico do século XX. Será que o esclarecimento que Kant esperava no século XVIII realmente ocorreu?

O que é o esclarecimento?

Vários autores alemães do século XVIII tentavam responder à pergunta “o que é o esclarecimento?”, e por isso também Kant escreveu um pequeno artigo sobre o tema. Antes de apresentar a resposta de Kant à questão, definiremos de maneira geral o que seria a Aufklärung, também chamada de Iluminismo.

O esclarecimento foi um movimento intelectual com raízes no século XVII, na Inglaterra (livres pensadores). Sua expressão mais conhecida, todavia, se deu com os enciclopedistas na França do século XVIII, mas ele se estabeleceu também com características próprias na Alemanha e, a partir daí, alastrou-se por todo o continente europeu. Uma das principais características do esclarecimento é o esforço de superar doutrinas herdadas e sustentadas unicamente através da autoridade. Ele inclui também a busca por uma nova maneira de enxergar a vida e a sociedade baseada em uma perspectiva racional.

Podemos apontar também algumas características quanto à forma e ao conteúdo do movimento. De maneira formal, o esclarecimento é caracterizado por clareza racional, precisão crítica e amplitude empírica. Quanto ao seu conteúdo, ele coloca o seu centro de gravidade na razão. Esta é a capacidade que torna o ser humano aquilo que ele é, além de ser também a responsável pelo pensar logicamente correto e pelo agir moralmente bom.

Ao contrário do que afirma a doutrina do pecado original, o ser humano é capaz do bem. Uma das consequências desta perspectiva iluminista é a crença em um progresso contínuo não apenas do indivíduo, mas também da sociedade – em uma palavra, o esclarecimento é otimista, além de também defender a tolerância e a igualdade de todos os indivíduos perante a lei.

Tudo isso torna o esclarecimento um inimigo declarado da religião. Seja na forma de deísmo ou ateísmo, o iluminismo travou uma guerra aberta à superstição, a certas doutrinas religiosas ou mesmo à religião como um todo, o que também se refletiu na forma de considerar a política e o Estado.

Sapere aude! Ouse saber!

Em um pequeno texto intitulado Resposta à pergunta: o que é o esclarecimento?, Immanuel Kant nos desafia a deixar o que ele chama de “período da menoridade intelectual”. Ele afirma que somos responsáveis – ou culpados - por nossa menoridade intelectual quando esta é causada não por uma deficiência da razão, mas por falta de coragem e determinação de usar sua própria razão sem ser guiado por outros. O lema do Iluminismo, para Kant, traduz-se como: “Ouse saber! Tenha coragem de usar sua própria razão!”.

Grande parte da humanidade prefere ser guiada por outros a ser livre no pensamento, e isso por duas razões: preguiça e covardia. A maioria, mesmo sendo politicamente livre, prefere permanecer sob tutela intelectual, surgindo então os aproveitadores para se tornarem os mentores da maioria. Fazendo já uma comparação com o nosso tempo, estes hoje seriam vários tipos de coaches e de influencers.

Permanecer em sua minoridade intelectual, ser mais uma ovelha no rebanho é confortável, afirma Kant. Se o indivíduo tem um livro que pensa por ele ou se tem um conselheiro que orienta sua consciência, então ele não precisa pensar. Para que pensar se eu posso pagar alguém que o faça por mim? Se eu sigo um guru intelectual ou encontro sempre no YouTube alguém que interpreta a realidade por mim, eu posso me poupar o esforço.

Kant reconhece que é difícil ao indivíduo isolado superar sua menoridade intelectual quando esta já se tornou praticamente sua segunda natureza. Àqueles a quem nunca foi permitido usar sua própria razão, é bem mais fácil recorrer a fórmulas e frases prontas para se orientar – tanto na teoria quanto na prática - do que pensar por si mesmo.

A questão é diferente, no entanto, para o grande público. Se para o indivíduo isolado é difícil superar esta situação, a libertação coletiva é praticamente inevitável quando se tem um contexto de liberdade do pensar. Ao adquirir autonomia no pensamento, cada um então reconhece seu próprio valor, toma consciência da vocação do homem ao pensar por si mesmo e comunica aos outros suas descobertas. Através da discussão pública novas ideias surgem, criticam as antigas, são também questionadas e passam pela purificação do debate.

Isso só pode ocorrer, todavia, bem lentamente: uma revolução política pode até destituir imediatamente alguns déspotas ou aproveitadores, mas nunca pode trazer uma verdadeira reforma do pensamento na mesma velocidade.

O esclarecimento precisa apenas de uma condição para acontecer: liberdade para uso público da razão, em todas as esferas. Kant diferencia, contudo, entre o uso público e o uso privado de nossa razão, e afirma que a vida em sociedade não nos permite questionar tudo a todo momento. Em muitas ocasiões ainda temos que simplesmente obedecer, pois de outra maneira não seria possível viver em comunidade. Um oficial em serviço público, por exemplo, não pode se perguntar pela utilidade da ordem recebida durante sua execução, embora possa critica-la enquanto intelectual ou mesmo abandonar seu cargo se não estiver convencido da racionalidade de suas tarefas. Também um padre ou pastor, por exemplo, pode não estar totalmente convencido daquilo que ensina à sua igreja, mas enquanto empregado da mesma ele deve pregar de acordo com seu dever. Se um dia, no entanto, suas dúvidas confrontarem as próprias bases de sua fé, ele também deve deixar seu posto.

O que o líder religioso de nosso exemplo faz é chamado por Kant de uso privado da razão, pois embora ele pregue para uma determinada comunidade – mesmo que composta por milhares de pessoas – ela ainda é um grupo fechado. O uso público da razão, por outro lado, é aquele realizado pelo intelectual ao publicar um livro ao mundo, por exemplo. Este intelectual possui, ao contrário do padre e do oficial de nosso exemplo, uma liberdade ilimitada para utilizar sua própria razão e falar apenas em seu próprio nome.

A vocação originária da natureza humana consiste em evoluir, em superar os limites de seu próprio tempo. Por isso nenhuma geração tem o direito de negar às gerações seguintes a possibilidade de questionar aquilo que ela própria estabeleceu, de impedir seu próprio desenvolvimento e a ampliação de seu próprio conhecimento. Isso seria ferir os diretos sagrados da humanidade e pisar sobre eles.

Este texto de Kant foi publicado em 1784. O filósofo de Königsberg não acreditava que viva em uma sociedade já esclarecida, mas em processo de esclarecimento. Ainda faltava muito para que os indivíduos daquela época fizessem uso de sua própria razão sobretudo no que dizia respeito às questões religiosas. Esta era a principal área na qual havia tutores impedindo os cidadãos de pensar por conta própria, enquanto que em questões de arte ou ciência já não havia tanto controle.

O outro lado do esclarecimento

O esclarecimento exige uma irrestrita liberdade de imprensa. Esta é a principal tese de Kant neste pequeno escrito publicado justamente em um jornal berlinense. Tendo em vista, contudo, os desdobramentos históricos da época de Kant até os nossos dias, seria tal liberdade de imprensa suficiente para esclarecer todo um povo, todo um país, toda uma sociedade?

Em sua Dialética do esclarecimento, Theodor Adorno e Max Horkheimer tentam compreender justamente o que deu errado neste processo de esclarecimento. Para os autores, a liberdade na sociedade é inseparável do pensamento esclarecido, mas este já contém em si o núcleo do regresso. A ascensão do nazismo e o assassinato de milhões de pessoas na Segunda Guerra Mundial não foi uma interrupção do esclarecimento ou sua ruptura, mas justamente um de seus aspectos. A razão e a ciência se reduziram a meros instrumentos de dominação da natureza e se voltaram também contra o próprio homem.

A indústria cultural é outro desenvolvimento da lógica do esclarecimento. Esta se organiza na forma de imprensa, rádio, cinema e serviços de transmissão de conteúdo, oferecendo entretenimento, notícias e informação a milhões de pessoas. Ela busca não apenas influenciar a demanda por determinadas mercadorias, mas também tornar minimamente previsíveis o comportamento social e político das massas.

Ela não traz, contudo, o esclarecimento esperado por Kant, mas atua em sentido contrário: aliena os indivíduos, espalha preconceitos, ideologias nefastas, define estilos de vida e hábitos de consumo. E tudo isso sem nenhum controle estatal ou censura.

Também a coragem para usar a própria razão pode se manifestar de uma maneira não desejada por Kant em seu escrito. Todo tipo de negacionista da ciência ou adeptos de teorias conspiratórias acreditam estar fazendo uso da própria razão de maneira autônoma, independente. Isso revela que não basta a coragem para usar a própria razão, mas que é necessário ter também as condições subjetivas para tal. Indivíduos que nunca passaram por um processo de formação adequado nunca serão capazes de fazer uso de sua própria razão da maneira como Kant idealizava. 

Na época de Kant, uma carta de Königsberg a Berlim demorava dias para chegar. O acesso à informação era muito difícil, e livros ainda eram um luxo para poucos. Hoje em dia, qualquer pessoa pode comprar os clássicos da literatura e da filosofia dos últimos dois mil anos a preços populares, mas isso não é suficiente: se os indivíduos não tiverem as condições subjetivas para se apropriar dessas obras, pouco ou nada adianta sua produção e distribuição em alta escala.

Ouça sobre Kant e o esclarecimento em nosso podcast


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