Socialismo panaceia - o mito de que o marxismo promete o paraíso na Terra


O marxismo não promete o paraíso na Terra. Quem afirma o contrário revela não conhecer o mínimo necessário para fazer qualquer juízo que seja sobre a tradição iniciada por Karl Marx. É de certa maneira compreensível, no entanto, que tais indivíduos acreditem nesta caricatura, tendo em vista que o próprio trabalho de agitação e propaganda - práticas políticas essenciais para instruir e orientar as massas - propiciam frequentemente tal desentendimento.

O grande problema não seria, no entanto, a ignorância de outsiders sobre a natureza do marxismo. Preocupa-nos muito mais quando os próprios marxistas introjetam e acreditam na utopia do socialismo como panaceia, como um meio de cura universal para todos os males da humanidade. O filósofo húngaro Georg Lukács (1885-1971) nos ensina que uma ideia superada historicamente não desaparece simplesmente. Questões teóricas discutidas e derrotadas em um determinado período histórico reaparecem com frequência em outro tempo e lugar, servindo a outros senhores e não sabendo nada de seu próprio passado. O utopismo no movimento revolucionário é um dos melhores exemplos de tais mortos-vivos, não obstante sua identificação nem sempre seja tão óbvia. Muitas vezes estes reaparecem no próprio corpo do organismo que lhes devorou, como um alimento digerido e transformado em sangue, carne, pele e ossos, tornado parte de quem dele se alimenta.

O utopismo se manifesta no interior do pensamento marxista sempre que o socialismo é visto como uma situação ideal colocada em contraste com a sociedade presente. No pensamento dialético de G. W. F. Hegel e Karl Marx as contradições são imanentes, o novo surge a partir do velho, de seu interior, e não de uma justaposição de elementos distintos, de origens diferentes. Basta observar o método utilizado por Marx em sua principal obra, O capital: em momento algum o filósofo alemão compara o capitalismo com uma sociedade futura chamada “comunismo”, mas aponta sempre as contradições internas do próprio capital e a necessidade de resolvê-las em um nível superior.

Vários marxistas, no entanto, fazem o oposto em seu material de agitação e propaganda. Ao denunciar em seus textos questões sociais de fato muito importantes, tais como fome, falta de saneamento básico ou moradia, precarização da educação ou violência policial, estes arrematam sempre da mesma forma: “apenas no socialismo tais questões estarão resolvidas”. Não importa qual seja o problema, tudo será resolvido no socialismo, não obstante a omissão das mediações, dos caminhos para que isso aconteça.

Isso me lembra um exemplo fornecido por Terry Eagleton em sua obra Por que Marx tinha razão. O crítico literário britânico havia sido encarregado de escrever uma pequena matéria sobre um acidente de trânsito recente, mas como o jornal era de uma organização política marxista, a instrução é que ele deveria dar um “ângulo de classe” para o ocorrido. A questão, porém, é que às vezes um acidente é apenas um acidente. Nem tudo é resultado da luta de classes, e tentar explicar cada aspecto da realidade através desta categoria significa confirmar aquela caricatura de marxismo apontada por Karl Popper como pseudociência.



Sem dúvida alguma o socialismo resolverá alguns dos maiores problemas da humanidade. Fome, guerras, moradia e violência serão então parte do passado, daquele período histórico que receberá o nome de “pré-história da humanidade”. Quando todas as necessidades materiais estiverem satisfeitas, no entanto, o que faremos? Não haverá mais, em uma sociedade comunista, coisas como doença, acidentes, morte, dor, luto, melancolia ou loucura? Será que vamos parar de nos perguntar pelo sentido da vida e por nosso lugar neste imenso universo? Não seria de se esperar que, com mais tempo disponível e livre de preocupações mesquinhas e pela sobrevivência, tais questões não sejam colocadas ainda com mais força e frequência? 

O ócio produz pensamentos, e pensar é perigoso, já afirmava Friedrich Nietzsche. Este exercício de pensamento sobre um futuro comunista distante é importante não para imaginar a sociedade ideal – Marx foi absolutamente contra tais idealizações -, mas para testar alguns princípios. Sigmund Freud, por exemplo, se perguntou em O futuro de uma ilusão quem serão os antagonistas dos comunistas quando a burguesia não mais existir, pois a agressividade, segundo o pai da psicanálise, é algo mais fundamental em nós, seres humanos, e não apenas um produto da luta de classes. Se imaginamos uma sociedade comunista sem nenhum tipo de violência, agressividade ou crime, isso nos revelaria problemas em nossa concepção antropológica, em como enxergamos o ser humano.

Temos aqui um problema que é também de ordem prática. Tudo aquilo que é apresentado como panaceia, como capaz de curar todos os males, é visto como suspeito. O socialismo também não é crível quando apresentado desta forma, não obstante ainda encontre acolhida em determinados nichos e círculos. É verdade que nunca ouvi um marxista afirmar literalmente que o socialismo é o paraíso na terra. É difícil não chegar a esta conclusão, contudo, quando este é apresentado como a solução para qualquer problema, e quando qualquer assunto que não seja a revolução se torna menor e indigno do tempo e do esforço de um revolucionário. A reificação, entendida como a perda da totalidade, se revela aqui no interior do próprio movimento comunista, de modo que a revolução deixa de ser dialética, mediada e totalizante para se transformar em uma situação futura coisificada.

O utopismo de certas organizações as leva até mesmo à crueldade. A crença no socialismo como panaceia, aliada a uma incompreensão do que é e de como se desenvolve consciência de classe, leva certos grupos a desejar a desgraça do povo como condição necessária para o Apocalipse, para a Batalha Final, depois dos quais a Nova Jerusalém Comunista descerá dos céus. O pensamento perverso por trás é mais ou menos o seguinte: “se o povo sofrer demasiadamente e sua situação de vida se tornar insuportável, eles certamente se rebelarão à esquerda.” A história nos ensina, contudo, que nada garante que em situações de crise os trabalhadores se tornarão revolucionários – em alguns casos podem aderir até mesmo ao fascismo. Precisamos lembrar também que os comunistas lutam sempre para melhorar a situação do povo, não para piorá-la. E isso significa fazer tudo o que for possível também no momento presente, até mesmo reformas e programas sociais nos limites do capitalismo, pois a vida acontece agora. Quem tem fome, por exemplo, precisa comer ainda hoje.

Não esqueçamos esta lição básica do pensamento de Marx e Engels: uma vez transformada a base social, as representações que fazemos do mundo também mudam. O que eles não escreveram em lugar algum, no entanto, é que todos os problemas que possuímos agora deixarão de existir em novas bases sociais. A essência humana deve ser compreendida também como parte da natureza, pois nunca deixamos de ser animais, parte do mundo físico, material. 

Não somos seres infinitamente plásticos, moldados unicamente pela situação social, como quer o pós-modernismo. É por isso que na arte, por exemplo, nos deparamos com o fato de que as tragédias gregas ainda nos proporcionam prazer estético, mesmo sendo produto de uma sociedade muito diferente da nossa. Há muitas coisas que os gregos antigos possuíam e que compartilhamos com eles, e talvez jamais encontraremos alguma sociedade com a qual não temos nada em comum. Tudo o que é humano nos diz respeito e deve nos interessar.

Além da arte, devemos mencionar também a filosofia. Por que tantos marxistas rebaixam a imensa riqueza da tradição filosófica como um mero rascunho ou preparação para Karl Marx? Será que o marxismo guarda o segredo do universo, possuindo a chave da tão sonhada teoria de tudo? A pergunta é retórica e hiperbólica, mas tem fins didáticos: é claro que o marxismo não responde a todos os problemas da humanidade, e isso não é um problema ou uma diminuição de sua importância. 

Nenhuma teoria social explica o mundo em que vivemos hoje melhor do que a obra de Marx e a tradição que a continua, o que não significa dizer, todavia, que não existam outros aspectos da realidade que não estavam no escopo das pesquisas de Marx. E mesmo se estivessem, não poderiam ser abordadas em profundidade no curto espaço de tempo de uma vida humana. Enxergar toda a tradição filosófica como uma mera preparação para a entrada triunfante de Marx na galeria dos heróis pensantes é análogo à interpretação cristã de que todo o Antigo Testamento é apenas o prelúdio para o surgimento de Jesus Cristo.

Não enxergar que, apesar de tudo, ainda há beleza, arte e a possibilidade de ser feliz neste mundo é mais que um problema teórico: é psicológico. Quando abandonamos esta vida em nome de uma sociedade futura perfeita e não tentamos extrair o máximo da existência que temos agora, não somos nada mais que niilistas, negadores da vida, e nisso concordamos com Nietzsche. O socialismo como panaceia é uma religião secular niilista, e como tal cumpre exatamente o papel de ópio criticado por Marx.

A revolução social é uma exigência da razão a fim de resolver não apenas problemas práticos, mas também teóricos. Esta é a posição básica de Marx implícita em seus escritos filosóficos. Uma vida racional, todavia, não se esgota neste único aspecto, e tentar reduzir a existência de um revolucionário unicamente à tarefa da revolução significa aliená-lo de uma existência humana na plenitude em que é possível em uma sociedade de classes. 

Não perdemos de vista que há milhões de pessoas hoje no mundo ocupadas demais em apenas sobreviver, sem nem ao menos saber se conseguirão comer amanhã. É difícil ser feliz assim, pois uma alma tranquila exige um estômago cheio. O que escrevemos aqui não é para estes indivíduos, mas para aqueles que, assim como eu, têm o privilégio de ser explorados no capitalismo e conseguir sobreviver enquanto trabalhador.

A revolução é um meio para uma vida emancipada, de modo que não podemos perder de vista o que realmente importa: o objetivo final. A questão existencial mais importante para um revolucionário, de certa maneira, não é o que ele quer, mas o seu por quê. Quando eu me pergunto “o que exatamente eu busco para mim em uma sociedade comunista?”, tenho a resposta do que realmente importa não para o gênero humano em sua totalidade, mas para mim. Martin Heidegger afirmava que, ao falar sobre a morte, geralmente nos referimos à morte dos outros, mas nunca à nossa própria.

É neste sentido existencial que também devemos falar sobre a revolução. Já sabemos o que ela significará para aqueles bilhões de pessoas mais oprimidas que nós, as quais não receberam uma educação suficiente nem mesmo para conseguir ler este texto. Se agora volto esta pergunta para mim mesmo e reflito sobre meus anseios em uma sociedade emancipada, me deparo então com minha busca por completude não apenas psicológica, mas também ontológica. Será que algum tipo de organização social é capaz de satisfazer estes nossos desejos? Talvez eles encontrem sua realização muito mais na arte e no prazer estético do que em uma distorção idealista do socialismo como panaceia.

Ouça sobre este tema em nosso podcast

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