Em 1927, após declarar em uma entrevista sua indiferença quanto ao tema da vida após a morte e sua falta de fé religiosa, Freud recebeu uma carta de um médico americano que havia lido esta entrevista. Nesta carta ele descrevia sua experiência de conversão ao Cristianismo, na esperança de que esta pudesse levar Freud a uma reflexão sobre o assunto.
A experiência relatada pelo médico foi publicada no artigo "Uma experiência religiosa", publicada no Brasil na Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, no volume XXI, pela Editora Imago, e é como se segue:
"Certa tarde, ao atravessar a sala de dissecção, minha atenção foi atraída por uma velhinha de rosto suave que estava sendo conduzida para uma mesa de dissecção. Essa mulher de rosto suave me causou tal impressão que um pensamento atravessou minha mente: 'Não existe Deus; se existisse, não permitiria que essa pobre velhinha fosse levada a sala de dissecção.'
"Quando voltei para casa naquela tarde, o sentimento que experimentara à visão na sala de dissecção, fizera-me decidir não mais continuar indo à igreja. As doutrinas do cristianismo, antes disso, já tinham sido objeto de dúvidas em meu espírito.
"Enquanto meditava sobre o assunto, uma voz falou-me à alma que 'eu deveria considerar o passo que estava a ponto de dar'. Meu espírito replicou a essa voz interior: 'Se eu tivesse a certeza de que o cristianismo é verdade e que a Bíblia é a Palavra de Deus, então eu os aceitaria.'
"No decorrer das semanas seguintes, Deus tornou claro à minha alma que a Bíblia era Sua Palavra, que os ensinamentos a respeito de Jesus Cristo eram verdadeiros e que Jesus era nossa única salvação. Após uma revelação tão clara, aceitei a Bíblia como sendo a Palavra de Deus, e Jesus Cristo, como meu Salvador pessoal. Desde então, Deus Se revelou a mim por meio de muitas provas infalíveis."
Ao final da carta, o médico americano implorava Freud para refletir sobre o tema, pois estava dirigindo orações a Deus para que este lhe concedesse fé para crer.
Essa experiência, sendo um tanto enigmática e baseada em uma lógica particularmente ruim, exigia, para Freud, uma tentativa de interpretação baseada em motivos emocionais, haja vista que Deus permite a ocorrência de coisas muito piores do que a remoção de um cadáver de uma velhinha para a sala de dissecção. E um médico, é claro, sabe muito bem disso. Então por qual razão sua indignação contra Deus irrompeu justamente ao receber essa impressão na sala de dissecção?
A interpretação dessa experiência religiosa, segundo Freud, seria como se segue:
"A visão de um cadáver de mulher, nu ou a ponto de ser despido, recordou ao jovem sua mãe. Despertou nele um anseio pela mãe que se originava de seu complexo de Édipo, e isso foi imediatamente completado por um sentimento de indignação contra o pai. Suas idéias de ‘pai’ e ‘Deus’ ainda não se tinham separado inteiramente, de modo que seu desejo de destruir o pai podia tornar-se consciente como dúvida a respeito da existência de Deus e procurar justificar-se aos olhos da razão como indignação com o mau trato dado a um objeto materno. Naturalmente, é típico do filho considerar como mau trato o que o pai faz à mãe nas relações sexuais. O novo impulso, deslocado para a esfera da religião, constituía apenas uma repetição da situação edipiana e, conseqüentemente, logo se defrontou com uma sorte semelhante, ou seja, sucumbiu a uma poderosa corrente oposta. Durante o conflito real, o nível do deslocamento não foi sustentado: não há menção de argumentos em justificação de Deus, não nos é dito quais foram os sinais infalíveis pelos quais Deus provou sua existência ao que duvidava. O conflito parece ter-se desdobrado sob a forma de uma psicose alucinatória: escutaram-se vozes interiores que enunciaram advertências contra a resistência a Deus. Mas o resultado da luta foi mais uma vez apresentado na esfera da religião, e era de um tipo predeterminado pelo destino do complexo de Édipo: submissão completa à vontade de Deus Pai. O jovem tornou-se crente e aceitou tudo o que desde a infância lhe havia sido ensinado sobre Deus e Jesus Cristo. Tivera uma experiência religiosa e experimentaria uma conversão."
É interessante notar que nesta interpretação a Psicanálise se apresenta como uma ferramenta para explicar tanto a conversão à religião quanto o seu contrário, ou seja, o ateísmo, apesar de este último, no presente caso, ter sido superado. Mas como o próprio Freud faz notar ao final deste artigo, deve-se levar em consideração que nem todas as experiências de conversão podem ser tão facilmente compreendidas quanto essa. Poderíamos estender sua conclusão e afirmar que o mesmo se aplica aos casos de ateísmo.
A descrença em Deus é aqui apresentada como consequência de uma indignação contra o pai, como um reflexo do Complexo de Édipo deslocado para a esfera da religião, e a crença, por sua vez, foi consequência da resolução do Complexo de Édipo, isso é, a submissão completa à vontade de Deus Pai.
Simplesmente perfeito esse seu texto!
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