Psicanálise é ciência?


Quando perguntamos se X é P, devemos conhecer tanto o objeto X quanto a propriedade P a fim de estabelecer ou negar sua relação. Se queremos investigar se psicanálise é ciência, devemos então compreender o que exatamente é ciência e também o que é psicanálise. Não pretendemos oferecer respostas definitas aqui. Nosso objetivo é tão somente colocar a discussão nos trilhos, mostrar os caminhos e a maneira apropriada de se conduzir tal tipo de investigação, pois de outro modo não teremos outro resultado além de postular doxa versus doxa, opinião contra opinião, sem nunca alcançar de fato uma verdadeira episteme, ou conhecimento, sobre o tema.

Uma questão de filosofia da ciência

Definir ciência não é tarefa trivial. Devemos ser cautelosos com respostas apressadas e que consideram óbvio o significado do conceito, pois isso indica falta de familiaridade com o tema. A pergunta “o que é ciência?” é essencialmente filosófica, e isso não por sua formulação socrática clássica, no sentido “o que é X?”, mas pelo fato de nenhuma ciência possuir as ferramentas necessárias para analisar seus próprios fundamentos. Como afirmou Martin Heidegger em sua obra Was heißt denken?, “a ciência não pensa”. Segundo o filósofo alemão, “não se pode dizer com os métodos da Física o que a Física é. Mas o que a Física é, eu posso apenas pensar.”

A primeira lição que precisamos ter em mente é: a pergunta pela cientificidade da psicanálise é uma questão filosófica, e mais especificamente, de Filosofia da Ciência. O problema é que este debate geralmente é realizado por indivíduos que, não obstante algum talento e acúmulo em outras áreas do conhecimento, não possuem nem inclinação para lidar com questões filosóficas, nem a formação necessária para tal. O resultado, por conseguinte, é um tratamento superficial e dogmático da questão, exatamente o oposto do que deveria ser se conduzido de maneira filosófica.

Um pouco de familiaridade com a Filosofia da Ciência já seria suficiente para ampliar a dimensão do debate. Qualquer leitura introdutória à disciplina já nos mostra que a questão é muito mais complexa do que iniciados podem imaginar num primeiro momento. Por exemplo, em sua clássica obra O que é ciência, afinal?, Alan F. Chalmers nos oferece uma visão geral das complexas discussões por uma definição de ciência e seus métodos, abrangendo teóricos como Karl Popper, Thomas Kuhn, Imre Lakatos e Paul Feyerabend.

A falseabilidade seria um dos critérios de cientificidade para Karl Popper. Uma teoria só pode ser considerada científica se ela puder ser falseada, e ele ilustra tal princípio analisando a psicologia de Adler. O fundamento das ações humanas seria, segundo a psicologia adleriana, sentimentos de inferioridade. Imaginemos então uma situação na qual um homem está na beira de um rio, e então uma criança cai e começa a se afogar. O homem pode pular na água para salvar a criança ou não. Se ele o fizer, a psicologia adleriana pode explicar tal fato dizendo que o homem quis vencer seu sentimento de inferioridade mostrando-se corajoso. Se o homem não pular para salvar a criança e apenas assistir o seu afogamento, a psicologia adleriana também tem uma explicação: o homem mostrou que tem força suficiente para permanecer na beira do rio, imperturbável e impassível como um filósofo estoico. 

Não nos interessa aqui se Popper está descrevendo a psicologia de Adler de maneira honesta ou apenas atacando uma caricatura, um espantalho, uma versão enfraquecida da mesma: o ponto é mostrar que não podem ser consideradas científicas aquelas teorias não falseáveis e que explicam qualquer fato do mundo. Muitas doutrinas religiosas são exatamente assim. Em uma catástrofe natural, por exemplo, a vontade de Deus está em tudo, desde na permissão às forças da natureza para irromper, destruir e matar, como também no livramento dado àquelas pessoas que permaneceram vivas, como provas de um “milagre”, da intervenção do mesmo Deus que em primeiro lugar permitiu a tragédia. Se uma determinada teoria afirma que “todos os cisnes são brancos”, a teoria poderia ser falseada apontando-se um único cisne negro, mas enquanto isso não for feito, cada cisne branco no mundo aumenta a probabilidade de a teoria ser verdadeira.

É importante não perder de vista, no entanto, que a afirmação de Popper não é exatamente científica. Em outras palavras, ela está dizendo basicamente o seguinte: “uma teoria só pode ser considerada científica se ela for falseável.” Se aplicarmos o princípio de Popper contra si mesmo, ele passa no teste? O princípio de falseabilidade é ele mesmo falseável? E se uma determinada teoria não for falseável mas, mesmo assim, nunca for provada falsa? Uma teoria pode ser verdadeira sem nunca alcançar o status de científica? Isso não é tão importante para nossa discussão no momento. Queremos ressaltar apenas que várias afirmações sobre ciência, tais como o princípio de falseabilidade, não são exatamente científicas, mas de filosofia da ciência.

Seria científico apenas aquilo que se pode reproduzir em laboratório? Tal perspectiva abriria diversas lacunas em teorias consideradas científicas hoje, tais como a da evolução das espécies. As evidências que temos neste caso são obtidas de outras maneiras, a partir de outras fontes como as fósseis, comparação de DNA, etc., mas não reproduzindo a própria evolução das espécies em laboratórios. Neste sentido, existe até mesmo uma tentativa de objeção bioquímica a certos aspectos da evolução no livro A caixa preta de Darwin, de Michael J. Behe. Se consideramos científico apenas aquilo que puder ser reproduzido em laboratório, então nem mesmo a teoria da evolução é científica em sua totalidade.

Objeto e grau de certeza

O objeto define, de certa maneira, seu meio de investigação. Esta é uma das conclusões que podemos extrair de uma breve reflexão de Aristóteles sobre os diversos tipos de ciência. Em sua obra Ética a Nicômaco, o filósofo grego afirma que não se pode esperar o mesmo grau de certeza em todas as áreas do conhecimento, de modo que falar sobre Ética, por exemplo, é bem diferente de realizar cálculos aritméticos. Para o discípulo de Platão, um indivíduo culto buscará “por precisão em cada classe de coisas apenas até onde a natureza do assunto admite; é tolo tanto aceitar um raciocínio provável de um matemático quanto exigir provas científicas de um retórico.”

Tendo isto em vista, nos perguntamos: e quanto o objeto de estudo é o próprio ser humano? Se considerarmos que cada indivíduo é muito mais complexo do que apenas um aglomerado de matéria, que cada um de nós possui uma vida anímica complexa e resultante de nossas histórias enquanto indivíduos e também parte de uma comunidade, como devemos abordá-lo? Qual a melhor maneira de abordar a mente de um indivíduo considerando-lhe distinta de seu cérebro? É possível estudar em laboratório a história de vida de um indivíduo?

Freud afirma no início de Psicologia de massas e análise do eu que a psicologia individual é, desde o início e ao mesmo tempo, uma psicologia social (em um sentido mais amplo do termo). Os relacionamentos que temos desde a tenra infância com irmãos e pais, por exemplo, já são sociais, de modo que não é possível separar a psicologia individual da psicologia social. A diferença entre os dois tipos de psicologia seria em relação ao número de pessoas pelas quais o indivíduo é influenciado: poucas (apenas o círculo mais próximo) ou muitas (as massas). Toda psicologia é social, de modo que a cientificidade neste campo não pode se limitar a identificar tendências estatísticas reproduzíveis em laboratório. Como poderia uma psicologia científica tratar a neurose de João, um indivíduo concreto, a partir de seu histórico familiar, seguindo unicamente os métodos das ciências da natureza?

Grande parte de nossas enfermidades psíquicas e desprazeres se originam de nossas relações sociais. Em O mal-estar na civilização, Freud afirma que as três fontes principais de nossos sofrimentos são 1) o nosso próprio corpo, biologicamente destinado à decadência e à destruição; 2) o mundo externo, ou a natureza, o qual pode agir contra nós com uma força descomunal; e 3) as relações com as outras pessoas. Para o pai da psicanálise, nossas principais dores resultam desta última fonte. Nada nos machuca tanto, nada nos traz tantos desprazeres ao longo de nossas vidas como nossas relações com os outros.

Há diversos usos do termo ciência na história da filosofia. Algumas traduções de Platão, por exemplo, vertem o substantivo episteme como ciência. Também René Descartes tinha por objetivo desenvolver a filosofia de maneira científica, o que foi uma tendência também no Idealismo Alemão. O primeiro título de Hegel para a obra publicada como Fenomenologia do Espírito foi, na verdade, Ciência da experiência da consciência. Algumas obras de Johann Gottlieb Fichte também apresentavam o termo Wissenschaft em seu título, assim como surgiu no marxismo o termo socialismo científico para distinguir a teoria de Karl Marx e Friedrich Engels daquela dos socialistas utópicos anteriores. No alemão, Wissenschaft não quer dizer o mesmo que science em inglês. O termo se refere, em um sentido mais amplo, simplesmente ao conteúdo de um certo corpo de conhecimento transmitido através de textos e doutrinas. Em um sentido mais restrito, uma Wissenschaft investiga e ordena de maneira sistemática, e com métodos apropriados a seus objetos, uma determinada área do conhecimento, levando a totalidade do conhecimento assim alcançado a princípios gerais abrangentes, tentando explicá-los a partir destes. Interessante notar que a definição de ciência, em alemão, leva em conta a observação de Aristóteles de que o método deve ser apropriado ao objeto.

Há uma diferença entre o que é racional e científico de um lado, e o que é irracional e místico de outro. Uma determinada disciplina não deve ser descartada apenas por não caber em uma definição estreita de ciência da natureza, pois se é verdade que tudo o que é científico é racional, nem tudo o que é racional é científico neste sentido. Tomada de maneira positivista, o próprio conceito de ciência se mostra problemático, pois nenhuma observação do mundo é independente de uma teoria prévia que lhe indique não só o que observar, mas também como conduzir suas observações. Não existe acesso a “fatos puros” no mundo, de modo que todas as nossas tentativas de conhecimento estão mais envolvidas em ideações prévias do que podemos inicialmente supor.

A psicanálise é uma pseudociência?

Detratores da psicanálise tentam, às vezes, desqualificar a teoria freudiana como uma pseudociência análoga à astrologia. Isso é índice não apenas de uma completa ignorância da história do desenvolvimento da psicologia profunda de Sigmund Freud, como também de que ainda não possuem os pré-requisitos necessários para contribuir nesta discussão. Em diversas passagens da obra de Freud é possível observar que o pai da psicanálise não tinha dúvidas de que estava desenvolvendo uma ciência, não obstante seus objetos de pesquisa, tais como as neuroses e os processos psíquicos inconscientes, não pudessem ser observados em microscópios ou reproduzidos em laboratórios. Em Das Interesse an der Psychoanalyse (1913), Freud define a psicanálise como “um procedimento médico que visa a cura de determinados tipos de neuroses através de uma técnica psicológica.”

A relação entre psicanálise e ciência se mostrava complexa não apenas para o próprio Freud, mas também para Jacques Lacan, um dos mais importantes psicanalistas do século XX. Em sua discussão sobre arte versus ciência, por exemplo, Lacan (1989) afirma que a psicanálise deve ser classificada como uma arte, entendida aqui, todavia, em seu sentido medieval, quando as Artes Liberais incluíam aritmética, geometria, música e gramática. Alguns anos mais tarde, no entanto, o psicanalista francês afirma de maneira categórica que a psicanálise não é ciência, mas uma “prática com vocação científica”, muito embora no mesmo ano ele também viesse a se referir à “ciência psicanalítica” (LACAN, 1966).

O cientificismo – ou a tendência a submeter todas as áreas do conhecimento aos métodos das ciências naturais - pode trazer graves consequências quando o objeto de estudo é o indivíduo, sua história pessoal e sua subjetividade. Para o psicanalista britânico Darian Leader, autor do livro Além da depressão – novas formas de entender o luto e a melancolia (Editora BestSeller), a maioria dos historiadores da psiquiatria e da psicanálise concorda que a depressão foi criada como uma categoria clínica, entre outros motivos, por uma pressão para classificar os problemas psicológicos da mesma forma que os outros problemas de saúde, o que deu nova ênfase no comportamento superficial, deixando de lado os mecanismos mais profundos, inconscientes. Na década de 1970, após divulgação dos efeitos nefastos e viciantes dos tranquilizantes mais comuns para a depressão terem sido publicados e seu mercado ter desmoronado, uma nova categoria diagnóstica foi criada – e ao mesmo tempo um remédio para ela. Como resultado, a indústria farmacêutica lucrou tanto com a idéia da depressão quanto com sua cura.

O tratamento da depressão, quando vista como um “problema cerebral”, traz inúmeros riscos. A ingestão de paroxetina, por exemplo, aumenta o risco de suicídio. De acordo com a chamada “mitologia cerebral” da atual psiquiatria, no entanto, existe uma explicação bioquímica: essa substância causa apenas “pensamentos suicidas”. Dessa maneira, segundo Leader, tal explicação compartilha da crença de que nossos pensamentos e ações podem ser determinados bioquimicamente.

Isso se revela, numa análise de fundo, como um desdobramento de certa orientação filosófica do materialismo vulgar. O surgimento da psicanálise no final do século XIX foi uma resposta a essa antiga concepção, a qual hoje se reapresenta com ares de novidade. A psiquiatria não considera, em grande medida, as especificidades de cada indivíduo, e só precisa lhe ouvir no consultório para saber quais são seus sintomas mais superficiais. A psicanálise, ao contrário, deu voz ao indivíduo. Não o considera como um objeto, não o examina sob as lentes de um microscópio. A psicanálise considera a subjetividade e a história de cada indivíduo como únicas. É por isso que psicanalistas como Darian Leader defendem a necessidade de abandonar o atual conceito psiquiátrico de depressão e de considerá-la como um conjunto de sintomas que derivam de histórias humanas complexas e sempre diferentes, à luz dos conceitos freudianos de luto e melancolia. O tratamento psicanalítico da depressão busca suas causas mais profundas na história de vida do indivíduo e em seu inconsciente, não se limitando apenas aos sintomas e seus derivados.

Sem sombra de dúvidas os medicamentos auxiliam no alívio temporário do sofrimento, e são muito importantes quando seu uso é conjugado com outras psicoterapias, principalmente a psicanalítica. Sozinhos, no entanto, nunca resolvem definitivamente o problema da depressão, além de causarem efeitos colaterais e oferecerem risco de dependência. O mito da depressão como uma doença exclusivamente biológica é um conceito altamente lucrativo para a indústria farmacêutica, mas igualmente preocupante para a saúde pública. 

Elisabeth Roudinesco, historiadora francesa da psicanálise, afirma que por mais que as substâncias químicas possam ter sua utilidade, elas não tem o poder de curar o homem de seus sofrimentos psíquicos, sejam eles normais ou patológicos. Elas são “incapazes de curar o homem de seus sofrimentos psíquicos, sejam normais ou patológicos. A morte, as paixões, a sexualidade, a loucura, o inconsciente, a relação com o outro modelam a subjetividade de cada ser humano, e nenhuma ciência digna desse nome escapará disso.”  Todos estes são aspectos de nossa existência a que nenhuma ciência conseguirá pôr termo. E completa: A psicanálise, segundo Roudinesco, “atesta um avanço da civilização sobre a barbárie, e restaura a idéia de que o homem [...] não se restringe a seu ser biológico". A farmacologia, no que diz respeito ao tratamento de sofrimentos psíquicos, quase sempre não vai além de suspender sintomas ou transformar uma personalidade, e encerra o sujeito numa alienação ao pretender curá-lo da própria essência da condição humana.

Para responder à pergunta “psicanálise é ciência?” devemos, antes de tudo, identificar o real objeto da psicanálise. Lacan aborda esta questão em seu escrito Ciência e verdade, de 1966, no qual ele afirma que não existe uma ciência do homem pois o homem da ciência não existe, mas apenas o seu sujeito. É por isso que ele considerava que o próprio termo “ciências humanas” é um erro, excetuando-se aquela psicologia científica que se rendeu à tecnocracia. A questão da cientificidade da psicanálise é muito mais complexa do que parece num primeiro momento.

Referências

ARISTOTLE. Nicomachean Ethics. In: The basic works of Aristotle. New York: Random House, 2001.

CHALMERS, Alan F. Qu’est-ce que la science? Popper, Kuhn, Lakatos, Feyerabend. Paris: Éditions La Découverte, 1987.

LACAN, Jacques. "The Neurotic's Individual Myth," trans. Martha Evans, in L. Spurling (ed.), Sigmund Freud: Critical Assessments, vol. II, The Theory and Practice of Psychoanalysis, London and New York: Routledge, 1989, p. 224. [Originally published in Psychoanalytic Quaterly, 48 (1979)].

LACAN, Jacques. Écrits. Paris: Seuil, 1966. p. 876

Science. Disponível em https://nosubject.com/Science. Acesso em 08 de junho de 2023.

KIRCHNER, Friedrich; MICHAELIS, Carl. Wörterbuch der philosophischen Begriffe. Hamburg: Felix Meiner Verlag, 2020.

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