O desaparecimento da infância - a criança adultizada e o adulto infantilizado


A infância é uma construção histórica e está desaparecendo. Esta é a tese de Neil Postman em sua obra O desaparecimento da infância, publicada em 1982 e com uma segunda edição em 1994. A infância a que ele se refere não é aquela biológica, pois enquanto houver seres humanos neste planeta, tal fase de desenvolvimento continuará existindo. Seu argumento é mais refinado e se refere àquela construção social que teve início com o surgimento da imprensa, no século XV, e foi ganhando corpo nos séculos seguintes. É esta infância que está desaparecendo e criando o que ele chama de “crianças adultizadas” e “adultos infantilizados”, e os principais catalizadores deste movimento são os novos meios de comunicação. Na época em Postman lançou sua obra, a grande vilã era a televisão, mas com o passar dos anos seu argumento ganhou ainda mais força com o surgimento da internet e dos smartphones. Ao escrever o prefácio para o relançamento da obra em 1994, Postman afirmou que gostaria que suas teses tivessem sido provadas falsas com o tempo, mas não foi isso o que aconteceu. Podemos perceber, por exemplo, que os adultos estão saindo cada vez mais tarde das casas dos pais, e que muitas crianças se parecem cada vez mais com miniaturas de adultos. As fronteiras entre estas fases estão cada vez mais voláteis, e uma das causas deste fenômeno é a regressão de uma cultura do texto para uma cultura da imagem. O que são os memes senão uma das mais novas manifestações de tal tendência?

Postman inicia sua obra dizendo que as crianças são mensagens vivas que enviamos a um futuro que não veremos. Nenhuma cultura jamais esquecerá que ela precisa se reproduzir, mas isso não significa que uma ideia social de infância seja necessária. Logo de partida é preciso distinguir uma mera infancy, a qual é determinada biologicamente, do conceito cultural de childhood.

A ideia de infância na cultura ocidental tem menos de 200 anos de existência. A tese da obra de Postman é mostrar que a infância teve um início determinado e que seu fim já se acena no horizonte, tendo em vista que as barreiras que separam o mundo adulto do infantil se erodem cada vez mais.

As referências da literatura antiga sobre o que chamaríamos de “crianças” é ambígua. Sabemos que até a época de Aristóteles, por exemplo, não havia limites legais ou morais para a prática de infanticídio, e Xenofonte fala sobre as qualidades ideais que uma esposa de 15 anos de idade deveria ter. Heródoto conta uma história de dez homens da cidade de Corinto que foram até uma casa com a intenção de matar um menino, pois de acordo com um oráculo, ele destruiria a cidade quando crescesse. Quando a criança sorriu nos braços de um desses homens, eles tiveram pena e não executaram a ação.

Os gregos eram também, por outro lado, apaixonados por educação. O próprio Platão nos fala sobre como as crianças deveriam ser educadas em sua República, e o tema reaparece em vários outros de seus diálogos, como o Mênon, por exemplo, no qual um menino escravo é conduzido por Sócrates à descoberta de uma operação geométrica. Foram também os próprios gregos que inventaram a ideia de escola, e a palavra que eles utilizavam para “lazer” refletia a ideia ateniense de que uma pessoa civilizada gastaria seu tempo pensando e aprendendo.

Os romanos tomaram de empréstimo dos gregos a ideia de escola e ultrapassaram a noção de infância que eles tinham. A arte romana mostra, por exemplo, uma acentuada distinção de idades, entre crianças pequenas e em desenvolvimento, o que só foi visto novamente na cultura ocidental na época do Renascimento. Além disso, os romanos também começaram a estabelecer a conexão entre criança e a ideia de vergonha. Encontramos em um trecho de uma obra de Quintiliano a ideia de que as crianças deveriam ser defendidas, preservadas, poupadas de certos segredos adultos, e especialmente daqueles de caráter sexual, sendo esta uma característica essencial da ideia moderna de infância. Veio também dos romanos a primeira lei contra o infanticídio, promulgada em 374 A.D.

A Idade Média trouxe pelo menos quatro importantes transformações relacionadas ao tema da infância: 1) a alfabetização desapareceu; 2) a educação desapareceu; 3) a ideia de vergonha desapareceu; e 4) a infância desapareceu. É importante distinguir entre uma alfabetização social e uma de ofício. A alfabetização social significa uma condição em que a maioria das pessoas pode e de fato lê. A alfabetização de ofício significa uma condição em que a arte de ler é restrita a alguns poucos, como escribas e monges. A leitura na Idade Média, devido ao tipo de caligrafia artística que deveria ser decifrada, era por isso extremamente lenta, balbuciada, pronunciada palavra por palavra, como de uma criança na primeira série. O importante a se ressaltar é que, neste período, a Europa retornou a uma condição “natural” de comunicação oral, dominada pela fala e reforçada pela música.

No final da Idade Média e no início do Renascimento surge a imprensa, cujo surgimento é fundamental importância para o nascimento da ideia de infância como conhecemos hoje. É com a palavra escrita que surge o novo adulto, identificado como aquele que é capaz de ler e ter acesso a informações que o analfabeto – condição natural óbvia da criança – não pode ter. A Igreja Católica via a leitura como um processo de desintegração social, tendo em vista que a Reforma Protestante foi basicamente um movimento fortemente pautado no livro – a Bíblia, no caso. O ato de ler se tornou sinônimo de heresia, e não demorou muito até surgir o Index, ou a lista de livros proibidos. Os protestantes, por sua vez, já pensavam que a alfabetização ajudaria a diminuir a superstição e investiram massivamente na imprensa.

A ideia de infância não surgiu da mesma forma e ao mesmo tempo em todos os lugares. Nos países da Europa em que a alfabetização era apreciada, foram também criadas escolas e, com isso, seguiu-se necessariamente um rápido desenvolvimento da ideia de infância. É por esta razão que a ideia de infância se desenvolveu mais rapidamente nas Ilhas Britânicas, por exemplo. Não há dados exatos sobre a taxa de alfabetização no século XVI, mas o filósofo Thomas More estimava que em 1533, mais da metade da população inglesa podia ler uma tradução da Bíblia. Por volta de 1627, havia aproximadamente 40.000 crianças sendo educadas na França.

Tudo isso alterou a forma como a criança era percebida. Pelo fato de a escola preparar para uma vida adulta alfabetizada, o jovem veio a ser percebido não como uma miniatura de um adulto, mas como algo diferente, como um adulto em formação. Nos séculos XVI e XVII, a infância passou a ser definida e relacionada com o ato de frequentar uma escola. A infância passou a ser vista como uma descrição de um nível de desenvolvimento simbólico, de modo que enquanto a primeira infância (infancy) terminava com o aprendizado da língua falada, a infância cultural (childhood) começava com o início da aprendizagem da linguagem escrita. Era inclusive comum, na época, chamar de “criança” uma pessoa que não sabia ler, como alguém intelectualmente infantil.

Várias distinções sociais começaram a separar a criança do adulto, e uma delas foi o vestuário. Por volta do final do século XVI já era comum que as crianças tivessem um tipo de roupa próprio, diferente daquele usado pelos adultos. Teve início também a forma moderna da família, e os pais passaram a ser vistos como guardiões, tutores, protetores, provedores e árbitros do gosto, além de também educadores e teólogos, de modo que além da educação que as crianças tinham na escola, elas precisavam também de lições extras em casa.

Há uma estreita relação entre a “natureza da infância” e as exigências da língua escrita. O currículo escolar foi concebido para desenvolver aquele tipo de intelecto que é esperado de um adulto, tais como: uma percepção rigorosa de individualidade, a capacidade de pensar de forma lógica e sequencial, de tomar distância dos símbolos, de manipular altos níveis de abstração e de adiar gratificação. Devemos citar, além disso, a extraordinária capacidade de autocontrole, pois aprender através de livros é “antinatural” para uma criança, pois requer dela um alto grau de concentração que é contrário às suas inclinações. É por isso também que, neste período, o modo natural de ser das crianças passou a ser visto como algo ruim, maligno, a ser evitado, requerendo uma disciplina mais severa em sua educação.

A ideia de vergonha também é essencial na formação de uma criança. Freud já havia notado que a civilização é fruto da repressão, de modo que as mais altas realizações humanas só foram possíveis através da sublimação de nossas pulsões não gratificadas no mundo real. Erasmo de Rotterdam, em 1516, já ensinava aos garotos, através de sua obra Colóquios, como resistir às tentações (principalmente sexuais) e andar no caminho da virtude.

O surgimento da imprensa trouxe suas contradições. Por um lado, ela trouxe um acúmulo e uma distribuição de conhecimento sem precedentes, mas vários desses assuntos deveriam ser mantidos fora do alcance das crianças, tais como certos assunto sexuais, de dinheiro, violência, doença, morte e relações sociais. Surgiu até mesmo uma lista de palavras que não deveriam ser ouvidas ou pronunciadas por crianças, o que chamamos de palavrões. Ao mesmo tempo que quebrou um monopólio de conhecimento, a imprensa também restringiu as crianças a um ensino livresco, sujeitas à psicologia do livro e à supervisão dos pais e professores, sendo excluída de assuntos cotidianos aos quais as crianças tinham acesso no mundo medieval. Conhecimento destes segredos culturais se tornou, assim, uma das principais características da idade adulta, de modo que até tempos recentes, uma das principais distinções entre crianças e adultos é que estes estavam de posse de informações que não eram apropriadas às crianças.

Quando Postman fala sobre o desaparecimento da infância, ele se refere ao desaparecimento de uma ideia. Sua tese não é a de que a infância tenha surgido já plenamente desenvolvida do seio da imprensa de Gutenberg, embora este tenha sido um dos principais eventos em sua formação. Como toda e qualquer ideia, em cada lugar em que foi assimilada ela sofreu modificações, sendo ressignificada, enriquecida ou degradada, sempre de acordo com as condições econômicas, religiosas e culturais. A industrialização do século XVIII, por exemplo, foi uma feroz inimiga da infância, levando crianças a trabalharem em minas escuras e insalubres por horas a fio ao invés de frequentarem a escola. Por isso é importante também ressaltar que, inicialmente, a infância foi um fenômeno de classe média, e demorou algum tempo até que chegasse também às classes sociais mais pobres. A infância sobreviveu em uma Inglaterra industrializada somente porque as classes mais ricas mantiveram a ideia viva, pois adultos das classes oprimidas geralmente não estavam em condições se posicionar da maneira esperada em relação a uma criança. Más condições econômicas e de vida trazem um embrutecimento também dos afetos, de modo que os adultos deste período não conseguiam mostrar ou desenvolver o nível de afeição ou comprometimento que hoje consideramos normal em relação a uma criança.

O governo passou então a ter participação mais ativa na vida das crianças. Tal esforço pode ser visto principalmente nas diversas reformas escolares, o que se reflete também na biografia intelectual da Europa do século XVIII. Este foi o período de pensadores como Goethe, Voltaire, Diderot, Immanuel Kant, John Locke, Jean-Jacques Rousseau e David Hume, para citar apenas alguns.

Locke, por exemplo, exerceu enorme influência sobre a questão. Em sua obra Alguns pensamentos relativos à educação, publicado em 1693, ele apontou para as conexões entre infância e aprendizado através de livros. Uma de suas principais ideias, no entanto, afirma que a mente da criança, quando de seu nascimento, é uma tabula rasa. Sobre os pais recai então uma enorme responsabilidade sobre o que será escrito nesta mente, de modo que uma criança mal-educada, ignorante e incapaz de se envergonhar aponta para um fracasso de seus pais e educadores.

Rousseau foi outra grande influência na discussão infantil do século XVIII. Uma de suas principais contribuições é nos fazer enxergar que a criança é importante em si mesma, não se configurando apenas como um meio para um determinado fim, como se fosse apenas um potencial cidadão ou comerciante, como parece ser a posição de Locke. Rousseau também dava importância à vida intelectual e emocional da criança porque a infância é o período em que o ser humano está mais próximo do que ele chamava de “estado de natureza”.

De maneira geral, podemos dizer que a educação, para Locke, era um projeto de adição, enquanto que para Rousseau, de subtração. O filósofo francês afirma que não devemos ensinar virtudes às crianças, mas apenas livrá-las dos vícios.

No final do século XIX, dois pensadores definiriam todo o curso da discussão dali por diante, até os nossos dias. Sigmund Freud e John Dewey representam uma síntese da jornada da infância do século XVI até o século XX.

Freud afirma que a criança possui uma estrutura e um conteúdo únicos. Desde pequenos já possuímos sexualidade e somos imbuídos de complexos e instintos psíquicos – as chamadas pulsões. Para atingir a maturidade, ou idade adulta, a criança precisa superar, sublimas suas pulsões, e daí sua famosa afirmação, em O mal-estar na civilização, de que a civilização é fruto da repressão, pois é somente através deste processo que construímos as mais altas realizações culturais definidoras do processo civilizatório. Freud refuta Locke e confirma Rousseau, mostrando que a mente não é uma tabula rasa, e que a criança se aproxima, de fato, de um “estado de natureza”.

Dewey afirmará, por sua vez, que as necessidades psíquicas da criança devem ser consideradas em termos do que uma criança é, não do que ela será. Devemos nos perguntar, tanto em casa quanto na escola, o que a criança precisa agora, neste momento.

Freud e Dewey cristalizaram o paradigma básico que a infância seguiu desde o surgimento da imprensa: a criança enquanto estudante, cuja individualidade deve ser preservada através dos cuidados, e cuja capacidade de autocontrole e adiamento da gratificação, assim como o pensamento lógico, devem ser desenvolvidos.

O desaparecimento da infância – o início do fim

O período de 1850 a 1950 foi o ponto alto da infância dos EUA. Um grande esforço foi feito para tirar as crianças das fábricas e colocá-las nas escolas, vestindo suas próprias roupas, possuindo sua própria mobília, literatura, jogos e mundo social. Foi quando surgiu também o estereótipo de “família” que possuímos hoje. A categoria de infância passou então, de construção social, a categoria biológica, de maneira análoga ao que a filosofia chama de “segunda natureza”.

Se pudermos indicar um único indivíduo como o responsável pela era sem infância, este é Samuel Finley Breese Morse, da Universidade de New York. Morse foi responsável por enviar a primeira mensagem elétrica pública já transmitida neste planeta, e foi a partir de sua descoberta que chegamos ao telégrafo e aos principais meios de comunicação que conhecemos hoje.

O telégrafo elétrico foi o primeiro meio de comunicação a fazer com que a velocidade de uma mensagem fosse maior que a velocidade do corpo humano. Antes do telégrafo, todas as mensagens, incluindo aquelas escritas, só podiam se mover na velocidade do próprio mensageiro, mas agora criou-se um meio de transmitir conteúdo em alta velocidade, e na década de 1840 foi fundada a Associated Press.

A relação entre o fim da infância e a invenção do telégrafo reside na questão da comunicação. A infância surgiu como consequência de um ambiente no qual uma forma particular de informação era controlada exclusivamente pelos adultos, sendo reveladas aos pequenos através de estágios nos quais eles já estariam psicologicamente maduros para receber aquele tipo de informação. A manutenção da infância dependia, portanto, de um certo controle sobre as informações e de um aprendizado sequencial. O telégrafo iniciou, todavia, o processo que desconfigurou este modelo, tirando das mãos dos pais e da escola o monopólio da informação.

O telégrafo foi apenas o início de tudo. Depois disso surgiram a câmera, o telefone, o fonógrafo, os filmes, o rádio e a televisão. Todos estes novos meios de transmissão e comunicação trouxeram consigo uma “revolução gráfica” e o surgimento de um mundo simbólico de imagens, desenhos animados, pôsteres e anúncios, e sua importância não pode ser exagerada: a imagem produzida em massa mudou a própria forma da informação, de discursiva para não-discursiva, de proposicional para apresentação, de racional para emotiva. A linguagem é uma abstração sobre a experiência, enquanto imagens são representações concretas da experiência. Palavras e imagens são universos diferentes de discurso, pois uma palavra é, antes de tudo, uma ideia, imaginação. Não existe na natureza coisas como “gato”, “trabalho” ou “vinho”. Tais palavras são conceitos sobre regularidades que observamos na natureza, e imagens não mostram conceitos, mas coisas. Uma imagem, ao contrário de uma frase, é irrefutável. 

É por isso que podemos dizer que, de certa maneira, imagens são cognitivamente regressivas. A palavra escrita requer do leitor uma resposta agressiva quanto ao seu conteúdo de verdade, de modo que, pelo menos teoricamente, uma avaliação pode ser feita, caso o indivíduo tenha conhecimento ou experiência. As imagens, por sua vez, requerem do observador uma resposta estética, apelando às suas emoções ao invés da razão, nos pedindo não para pensar, mas para sentir. No passado, a incapacidade de transmitir aos outros nossas experiências imediatas nos fez desenvolver linguagem e conceitos. Quando a comunicação pode ser feita, no entanto, apontando o dedo, a boca se fecha, a mão que escreve não se move mais, e a mente encolhe.

A publicidade através de imagens é uma das forças mais destrutivas do mundo literato. A imagem de massas introduziu um elemento pervasivo de irracionalismo tanto na política quanto no comércio. Com a fotografia, o cinema e a televisão, a imagem de um candidato se tornou mais importante que seu programa de governo. É na televisão, portanto, que podemos ver mais claramente como e por que a base histórica para uma linha divisória entre infância e fase adulta está sendo erodida.

Ler e interpretar textos é muito mais complexo do que reagir a imagens. A alfabetização deve começar bem cedo, mas nesta fase, no entanto, as crianças ainda não estão biologicamente preparadas para os rigores da concentração e da imobilidade que tal processo exige. Pessoas que aprendem a ler depois que sua linguagem oral já está desenvolvida raramente se tornam leitores fluentes. O ato de ler não é apenas “decifrar o código”, mas uma maneira de se comportar, da qual a imobilidade física é apenas uma das características. Autocontenção é um desafio não apenas para o corpo, mas também para a mente. Frases, parágrafos e páginas se desenrolam lentamente, em sequência, em uma lógica nada intuitiva, e a pessoa letrada precisa aprender também a ser reflexiva, analítica, paciente e assertiva, capaz de dizer “não” a um texto quando necessário. Tendo em vista a dificuldade deste processo, não é difícil perceber por que ele era uma barreira que separava a infância da fase adulta.

Com a televisão, todavia, tudo isso colapsa. São as imagens que dominam a consciência do telespectador, não obstante a TV também fazer uso da linguagem, o que fica claro ao lembrarmos que um indivíduo assiste TV, não a lê. A mudança é tão rápida e dinâmica que pode chegar a 1.200 imagens por hora. 

Assistir televisão é algo tão primitivo que, além de não requerer nenhuma habilidade, também não desenvolve nenhuma. Nenhuma criança ou adulto se torna melhor em assistir televisão através da prática, fazendo mais do mesmo. As habilidades requeridas são tão elementares que nunca ouvimos falar de um “déficit de capacidade de assistir televisão”. Ao contrário de livros, que apresentam grande variedade em sua complexidade léxica e gramatical e que devem ser, por isso, recomendados de acordo com a habilidade do leitor, a imagem televisiva está disponível para todos, não importando sua idade. 

A televisão, neste sentido, não diferencia adultos e crianças, e está apagando a linha divisória entre infância e fase adulta de três maneiras: a primeira é que ela não exige instrução para compreender sua forma; a segunda é que ela não faz exigências complexas nem à mente, nem ao comportamento do telespectador; a terceira é que ela não segrega seu público. A televisão recria as condições de comunicação dos séculos XIV e XV, de modo que acaba com todos os segredos que a vida adulta mantinha escondida das crianças. Sem segredos, no entanto, não pode haver mais infância.

Um dos principais efeitos da TV é eliminar a exclusividade de um certo tipo de saber específico dos adultos. Tal efeito é consequência de um princípio ainda mais básico, elementar: o de que um grupo é definido pela exclusividade de informações que seus membros possuem. Se todos soubessem tudo o que os advogados sabem, não haveria advogados. Se os alunos soubessem o que seus professores sabem, não seria necessário diferenciá-los. Se todos aqueles que não estudam filosofia fossem tão filósofos quanto aqueles que de fato se ocupam desta área, o próprio termo já perderia o sentido. 

Todo grupo é, de certa maneira, uma conspiração contra todos os outros que se encontram fora dele. Claro que falamos aqui de grupos sociais, o que não envolve diferenças biológicas, como aquelas entre os sexos, por exemplo. Tendo em vista que a infância é uma construção social, e que as crianças se diferenciam dos adultos principalmente no que diz respeito a um determinado corpo de saber que possuem, a televisão rompe a barreira entre infância e fase adulta ao revelar às crianças o que elas não deveriam saber.

Uma das consequências é a perda de autoridade dos adultos. Grande parte desta autoridade vem do fato de os adultos serem a principal fonte de informação sobre o mundo e a vida para as crianças, mas se estas pensam que seus pais ou professores não sabem mais que eles, não há motivos para ouvi-los, obedecê-los ou admirá-los. A curiosidade é substituída pelo cinismo, quando não pela arrogância, de modo que muitas crianças e adolescentes confiam não mais em seus pais ou adultos cuidadores, mas em notícias que recebem de fontes muitas vezes dúbias.

Não é a primeira vez na história que as crianças sabem tanto sobre o mundo dos adultos como hoje. Isso era muito comum na Idade Média, e o ponto é justamente que pelo fato de estarmos criando uma situação análoga à daquele período, aquela construção social iniciada no Renascimento à qual damos o nome de infância está desaparecendo. Na Idade Média, a criança já estava socialmente integrada à comunidade de adultos tão logo conseguisse falar e compreender, não havendo muitos segredos ou vocabulário específico. A televisão recria este ambiente medieval, e não é nenhuma surpresa que crianças aprendam hoje tantas coisas indesejáveis que os próprios pais nunca ensinaram.

Se infância e fase adulta são correlatos, qualquer mudança em um dos lados afeta também o seu oposto. O desaparecimento da infância significa também, ao mesmo tempo, o desaparecimento do adulto, tendo em mente aquele conceito de fase adulta que já mencionamos: o adulto é alguém letrado, alfabetizado, capaz de se autoconter e adiar gratificação daquilo que lhe promete prazer, capaz de pensar de maneira conceitual e sequencial, de olhar para frente e se preocupar com o futuro, além de valorizar a razão e ordens hierárquicas. Com o desenvolvimento da televisão, da internet e dos smartphones, outros traços de caráter emergem e uma versão diminuída, light de fase adulta toma corpo e separa agora as fases da vida em três: infância em uma ponta, senilidade na outra e, no meio, o adulto infantilizado.

O adulto infantilizado pode ser definido como alguém já com idade biológica madura, mas cujas capacidades intelectuais e emocionais permanecem incompletas. Na Idade Média era normal a figura do adulto infantilizado, devido em grande parte à ausência de escolaridade. De maneira resumida podemos afirmar que a emergência do adulto infantilizado se deve ao fato de que, na arena simbólica em que os seres humanos crescem, estão acontecendo transformações em sua forma e conteúdo, as quais não requerem nenhuma distinção entre as sensibilidades de um adulto e de uma criança. Isso inevitavelmente funde as duas fases em apenas uma.

Um exemplo claro desta transformação está na consciência política. A forma da informação se tornou mais importante que seu conteúdo, de modo que todo candidato precisa de um marketing manager para tomar conta de sua imagem. A televisão é uma sucessão ininterrupta de imagens e muito pouco discursiva, chamando a atenção não para ideias, as quais são abstratas, distantes, complexas, e sequencias, mas para personalidades, as quais são concretas, vívidas. Isso quer dizer que a forma simbólica da informação política mudou radicalmente, de tal maneira que na era da televisão a opinião política não é mais formada a partir de uma análise de proposições, mas surge de uma resposta intuitiva e emocional à totalidade da imagem. O indivíduo não mais concorda ou discorda de uma posição política, mas simplesmente gosta ou desgosta dela.

A televisão enquanto meio de comunicação transforma o próprio conteúdo por ela transmitido, de modo que até mesmo a ciência se transforma em mero show. É por isso que o clássico programa Cosmos, de Carl Sagan, teve que transformar o apresentador em personalidade, animador, contador de histórias. Tendo em vista que um assunto como cosmologia não é apropriado para o formato televisivo, temos que ouvir sobre o assunto enquanto Carl Sagan anda de bicicleta. Jeremy Bernstein, professor de física e escritor, criticou o programa Cosmos dizendo que ao se apresentar um programa de ciência, a imagem deve permanecer estática, o apresentador deve ficar atrás de uma mesa e ele deve simplesmente falar. Tendo em vista que tal discurso envolveria ideias complexas e conjecturas, um programa assim estimularia uma imaginação mais refinada.

Tal tipo de programa, no entanto, não é televisão. Isso seria apenas fazer uso da TV para replicar um auditório ou uma sala de aula, e provavelmente nem aqueles que de fato querem muito aprender assistiriam a um programa assim por muito tempo. Podemos avaliar também, neste mesmo sentido, alguns canais no YouTube que não seguem exatamente o formato que mais faz sucesso na plataforma. Em meu canal Filosofia Vermelha, por exemplo, eu faço exatamente o que o professor Bernstein sugeriu: fico atrás de uma mesa, em uma imagem estática, e apresento sobre um tema que exige dos telespectadores um grau maior de atenção e certa capacidade de lidar com temas discursivos complexos. Isso não é exatamente ser YouTuber, mas apenas fazer uso da plataforma para veicular tal conteúdo.

Podemos resumir a questão da influência da televisão em nossa sociedade da seguinte maneira: assim como a alfabetização fonética alterou a consciência dos cidadãos atenienses no século V a.C.; assim como o desaparecimento de uma cultura letrada ajudou a formar a mente medieval; assim como a imprensa e a tipografia contribuíram na complexidade do pensamento; assim também a televisão é essencial em nosso tempo para distinguir entre a criança e o adulto. É da natureza da televisão homogeneizar todo tipo de mentalidade, e por isso ela cria conteúdo – e só pode criar conteúdo – para uma mente de doze anos. Uma cultura do texto nos trouxe lógica, ciência, educação e civilidade. Quanto a uma cultura da televisão, no entanto, não podemos ser tão otimistas.

As evidências do desaparecimento da infância são de diferentes tipos. Uma delas seria a fusão de gostos e estilos entre adultos e crianças, assim como nas novas perspectivas sobre instituições sociais relevantes tais como o direito, as escolas e os esportes. Há também evidências mais delicadas e problemáticas, tais como o alcoolismo, uso de drogas, atividade sexual e crimes, por exemplo. 

A televisão pode ser considerada, de certa forma, como o meio de comunicação mais democrático, pois só mostra aquilo que os indivíduos de fato querem ver e conseguem entender, pois apenas isso pode garantir seu sucesso comercial.

A televisão nos fornece diariamente exemplos da criança adultizada e do adulto infantilizado. Se repararmos bem nos adultos na televisão, com poucas exceções eles não levam seu trabalho muito a sério (quando trabalham), não precisam cuidar de seus filhos, não têm opção política, não possuem religião, não representam nenhuma tradição, não fazem planos, não têm conversas extensas e nunca fazem referência a nada que uma criança de oito anos de idade não possa compreender. Claro que podemos encontrar, em um tipo ou outro de programa ou série, algum adulto que não preencha todos os itens deste perfil que acabamos de traçar, mas são, como afirmamos, uma minoria. O modelo de adulto representado na televisão é aquele de uma criança, e isso pode ser visto em quase todo tipo de programa. Nos chamados game shows, por exemplo, os participantes são cuidadosamente selecionados tendo em vista principalmente sua capacidade de suportar humilhações.

A fusão dos mundos adulto e infantil pode ser vista também no vestuário. Isso varia quase que anualmente, de acordo com a moda, mas é cada vez mais comum crianças usarem modelos de roupa adulta e vice-versa. A enorme indústria dos jogos é hoje talvez uma das principais evidências da infantilização dos adultos. Jogos eletrônicos eram, algumas décadas atrás, voltados principalmente para crianças, havendo obviamente aquelas exceções usuais. Algumas décadas depois, no entanto, surgiu até mesmo o termo gamer como rótulo de uma nova identidade social. Adultos com idade suficiente para conhecer os grandes clássicos da humanidade, tais como a Ilíada e a Odisseia de Homero, por exemplo, dedicam horas da semana a jogos eletrônicos. Ao invés de estudar história, filosofia e tantas outras disciplinas importantíssimas para compreender o mundo adulto, preferem assistir a vídeos falando sobre mais jogos, levando a passividade a um grau extremo. Já foi uma perda quando as crianças pararam de brincar praticar esportes ao ar livre, por exemplo, para jogar simulações destes mesmos esportes nos videogames. A questão se torna pior ainda quando o indivíduo nem mais joga, mas assiste vídeos em que outros indivíduos estão jogando.

Podemos ainda mencionar o gosto musical como sintoma da infantilização do adulto. O declínio da apreciação da chamada música clássica, ou erudita, mostra que os adultos hoje não podem mais afirmar que seu gosto musical representa um nível maior de sensibilidade do que música para adolescentes. A música erudita, por exemplo, exige muita concentração e abstração, tendo em vista que a música, por não ser visual, não captura nossa atenção da mesma forma que uma pintura ou uma escultura, por exemplo. Nenhuma criança tem concentração suficiente para acompanhar todos os movimentos de uma sinfonia com 50 minutos de duração, e parece que é cada vez menor o número de adultos que também são capazes de fazê-lo.

É cada vez maior também o número de idosos em asilos. Isso seria mais uma evidência do adulto infantilizado, o qual se recusa a assumir total responsabilidade por seus pais, os quais são vistos como um fardo intolerável. Também as taxas de casamento, cada vez menores, são índice do mesmo fenômeno, assim como o menor número de filhos dos casais e a duração cada vez mais curta dos matrimônios. Também podemos perceber adultos saindo cada vez mais tarde das casas dos pais, o que era impensável algumas gerações atrás. Enquanto fatores econômicos e conjunturais são parte das causas do fenômeno, ele não se resume apenas à precarização do trabalho, à dificuldade de se conseguir trabalho ou ao preço dos aluguéis. Há também questões afetivas e emocionais desempenhando um importante papel na questão.

O argumento da obra, de maneira geral, é que a infância é uma construção histórica, e não estamos falando aqui da primeira infância biológica, a qual depende da natureza e sempre existirá enquanto houver seres humanos. O surgimento da imprensa no século XVI alterou a sociedade e fez surgir as categorias de adulto e criança, efetuando uma cisão entre os mundos de cada um. Assim como cada grupo se define por um corpo de conhecimento específico que possui – por exemplo, advogados sabem coisas que o resto da sociedade não sabe, caso contrário não existiriam advogados -, os universos do adulto e da criança se distinguem por aquilo que os adultos sabem e as crianças não, de modo que tornar-se adulto significa passar por um processo de escolarização e conhecer, gradualmente, os segredos dos mais velhos. Com o surgimento dos novos meios de comunicação, no entanto, e especialmente da televisão, quase não há mais segredos. Crianças e adultos perdem cada vez mais suas diferenças, e dessa fusão surgem as figuras da criança adultizada e do adulto infantilizado. O adulto, vale ressaltar, é definido não por idade ou questões biológicas, mas por habilidades tais como ser capaz de ler, de se concentrar, de adiar gratificação, de se interessar por política, de ser capaz de pensar de maneira conceitual e sequencial, de se preocupar com o futuro e valorizar a razão.

Glauber Ataide

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