O mundo existe? E se existe, é como o percebemos?


Que certeza podemos ter de que o mundo que percebemos à nossa volta realmente existe? Se respondermos dizendo que podemos ver, sentir ou ouvir coisas que parecem externas à nossa própria consciência, isso levanta outra pergunta: seriam os nossos sentidos uma fonte segura de conhecimento? A pergunta pela existência do mundo é essencialmente filosófica no sentido de que suscita inúmeras outras questões relevantes também a vários outros problemas teóricos.

Estes problemas conceituais, todavia, não interessam a todos. São daquele tipo de questões filosóficas sem interesse prático imediato, de maneira análoga às principais descobertas da astronomia. O que interessa ao João da Esquina, por exemplo, se há um buraco negro no centro de nossa galáxia? O que isso muda em seu cotidiano? E o fato de haver um oceano subterrâneo em Enceladus, uma das luas de Saturno, vai deixar sua própria conta de água mais barata? Mesmo que tais descobertas abram a perspectiva de uma colonização humana fora da Terra, isso não aconteceria ainda na geração do João da Esquina, de modo que tais investimentos científicos não são de seu interesse prático imediato. Perguntar filosoficamente, portanto, se a realidade é mesmo da forma como a percebemos, ou se o mundo realmente existe, não seria mais interessante do que tais descobertas astronômicas.

Esta questão me persegue desde a infância. Quando criança, eu costumava andar pelas ruas imaginando que a qualquer momento eu poderia acordar na areia de um deserto e perceber que toda a minha vida até então tinha sido apenas um sonho. Muitos anos depois, quando li Descartes pela primeira vez, me lembrei destes devaneios infantis e descobri que esta era, na verdade, uma grande questão epistemológica.

Na cultura popular, o filme Matrix é o principal divulgador deste tema. Na obra, há uma realidade alternativa que existe apenas na mente, sendo capaz de se apresentar à nossa consciência e ser percebida através de nossos sentidos. Qual a “verdadeira” realidade no filme? Podemos dizer que uma é “mais real” que a outra? E se estivermos presos na Matrix neste exato momento, como sair dela?

Formulando filosoficamente, a questão seria: se percebemos algo, isso prova sua existência ontológica? Os amigos imaginários de um esquizofrênico, por exemplo, podem ser para ele tão reais quanto qualquer um de nós, mas não somos da mesma opinião. Outro exemplo de como os sentidos nos enganam são pessoas que perderam partes do corpo (como uma perna ou um braço, por exemplo) mas que ainda sentem dores ou coceira nestes membros que não possuem mais. Isso nos mostra que os sentidos podem nos enganar, e se queremos um conhecimento seguro e irrefutável do mundo, este pode não ser o melhor ou o único caminho.

René Descartes era um racionalista, e por definição, duvidava dos sentidos. Para o filósofo francês, o conhecimento seguro deveria ser alcançado unicamente através da razão, considerada o único caminho sólido para fundar uma nova ciência. Descartes nos pergunta como podemos ter certeza se neste exato momento estamos acordados ou sonhando, tendo em vista que alguns de nossos sonhos parecem tão reais. Ele duvidou então da existência de toda a realidade, de modo a chegar à sua clássica descoberta: “Penso, logo existo”. Só posso ter certeza de que, se estou pensando, eu tenho que existir para isso, e o mundo que percebo à minha volta pode ser a criação de um gênio maligno que está me enganando. Até a certeza sobre este “eu”, no entanto, pode ser questionada, como o fizeram David e Hume e Friedrich Nietzsche. Em nossos momentos de introspecção, quando olhamos para dentro de nós, não encontramos um “eu”, mas apenas sensações, sentimentos, pensamentos, etc. Acreditamos que tudo isso que encontramos em nossa consciência pertence a um “eu”, mas este é apenas uma hipótese que criamos, um pressuposto.

Uma versão contemporânea de Descartes é a teoria do cérebro no tanque. Ela afirma que pode ser o caso que você seja apenas um cérebro mergulhado em componentes químicos sendo manipulado por cientistas. Todas as nossas percepções e crenças teriam sido manipuladas em um laboratório, e uma dessas crenças seria a de que a ciência atual não é capaz de executar tal experimento – uma forma de fazer com que você jamais duvide da realidade a que eles te induzem. De fato, que prova podemos ter de que não somos apenas um cérebro mergulhado em um tanque e de que nossas crenças não são controladas por eles? De que as pessoas que você conhece são apenas simulações, como em um jogo de realidade virtual?

Tudo o que temos são percepções. Quando dizemos que estamos “vendo” algo, estamos tendo uma percepção visual, mas não podemos dizer que estamos tendo acesso ao próprio mundo ou que, caso ele exista, o percebemos exatamente da forma como ele é. Todo conhecimento vem da experiência, mas como saber se nossa experiência corresponde exatamente aos objetos percebidos? Uma maneira de fazer isso seria comparando a representação mental que possuímos do objeto com o próprio objeto em sua forma pura, como está no mundo. Quem seria capaz de fazer isso, no entanto? Não temos acesso a nada no mundo a não ser através de nossos sentidos, de nossa percepção, de modo que não existe um ponto de vista “neutro” que poderia comparar minha percepção do objeto com o próprio objeto. De uma perspectiva evolucionista, talvez seja o caso de que nossos sentidos se desenvolveram de modo a nos mostrar o mundo não exatamente da forma como ele é, mas de maneira a garantir a preservação da espécie. Percebemos o mundo de uma forma que nos é útil para sobreviver, e não exatamente para conhecer a verdade.

Podemos dizer que estamos, de certa maneira, presos em nossas percepções, de que toda a realidade só existe em nossa mente, através da percepção que temos dela. Esta é uma das formas do que é chamado na filosofia de idealismo. Um dos principais representantes desta posição foi Georg Berkeley (1685-1753), um filósofo considerado empirista, idealista e imaterialista ao mesmo tempo. A ideia de que só podemos conhecer nossa realidade mental pode parecer extravagante, mas a própria experiência cotidiana nos mostra que ela faz sentido. Vejo em minha frente, ao meio-dia, uma árvore com folhas verdes. Eu não tenho percepção, no entanto, da cor verde das folhas desta mesma árvore à meia-noite, quando está escuro. Sabemos que não é o caso que as folhas mudaram de cor, mas sim que minha percepção foi alterada por causa da luz. As folhas são compostas de átomos e moléculas que absorvem e refletem determinadas frequências de energia eletromagnética que resulta em nossa percepção de que ela é verde.

O mundo fora de nós é a coisa em si. Este é o termo técnico filosófico utilizado pelo filósofo alemão Immanuel Kant para se referir ao mundo como ele é, independente de nós. Não podemos saber como a coisa em si realmente é, pois recebemos do mundo apenas um amontoado de sensações que, em si mesmos, não possuem forma alguma. Somos nós que, enquanto sujeitos do conhecimento, vamos dar forma às sensações que recebemos através de nossa percepção e vamos construir os objetos que acreditamos estar no mundo. Na esteira de Kant temos Arthur Schopenhauer, que em sua obra O mundo como vontade e representação afirma que o mundo é a minha representação. Entre mim e a realidade há sempre o intelecto, de modo que não posso ter um acesso direto, ou sem filtro, à realidade. Ao invés de “objeto”, em Schopenhauer temos sempre a “representação”, dependente do sujeito e sem o qual ela não existe.

O pressuposto filosófico de toda esta questão é a dualidade sujeito-objeto. Se partirmos do ponto de vista de que somos um sujeito independente do mundo tentando conhece-lo, é praticamente impossível evitar a incognoscibilidade do mundo externo. René Descartes, por exemplo, teve que recorrer a Deus para garantir não só a existência do mundo, mas também que as propriedades divinas são incompatíveis com a de um gênio enganador. Filosoficamente esta não é uma resposta satisfatória, e por isso a dúvida metódica de Descartes é mais relevante do que as soluções que ele propôs para restabelecer a certeza sobre tudo aquilo do qual duvidou. 

Mesmo Immanuel Kant, ao tentar responder tanto ao ceticismo radical de David Hume quanto ao idealismo de Georg Berkeley, não conseguiu nos trazer a certeza de que conhecemos o mundo realmente da forma como ele é. A situação começará a mudar de figura apenas quando Georg Wilhelm Friedrich Hegel questionar a dualidade sujeito-objeto que, segundo ele, permaneceu como um pressuposto inquestionável na filosofia crítica de Kant, a qual não foi, por essa razão, suficientemente crítica.

Ouça este tema em nosso podcast

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