O conceito de indústria cultural na Dialética do esclarecimento, de Adorno e Horkheimer

O conceito de indústria cultural serviu para designar, inicialmente, o complexo industrial e comercial de produção e distribuição de bens culturais na Europa e nos EUA desde a as primeiras décadas do século XX. Por este conceito não se deve compreender os dispositivos eletrônicos em si, tais como rádio, televisão ou revistas, mas sua apropriação pelo capitalismo monopolista e seu emprego através de uma lógica de produção de bens culturais.

O objetivo inicial da indústria cultural era, além de lucrar com uma ótima oportunidade de negócios, também estabelecer padrões de comportamento em massa, já que a organização dos trabalhadores, forte naquela época, representava um perigo real ao capitalismo.

Este sistema buscava não apenas influenciar a demanda por determinadas mercadorias, mas também tornar minimamente previsíveis o comportamento social e político das massas.

O texto na Dialética do esclarecimento

O principal texto em que a indústria cultural é discutida por Adorno e Horkheimer é um artigo que se encontra na obra Dialética do esclarecimento, intitulado Indústria cultural: esclarecimento como mistificação das massas.

Interessante notar que a palavra alemã traduzida como “mistificação” é Betrug, que na linguagem corrente é compreendida no sentido mais simples de “enganação” ou “fraude”. 

No início deste texto os autores observam que aqueles que achavam que o fim da religião objetiva e dos últimos resíduos pré-capitalistas resultariam em caos, são desmentidos todos os dias, pois hoje tudo é muito parecido, e os filmes, o rádio e as revistas, integrados, formam um sistema. Estes meios de difusão nem mais tentam se vender como arte, eles mesmos se reconhecem como meros negócios, business.

O monopólio da cultura, no entanto, é fraco diante dos verdadeiros chefes do capitalismo: os gigantes da indústria, do aço, do petróleo, da eletricidade e da química. Os estúdios de Hollywood e as grandes gravadoras sabem que devem obedecer a quem realmente manda.

A indústria cultural, assim como a automobilística, só apresenta uma aparência de concorrência. Assim como a diferença entre um modelo e outro de carro é mínima, irrelevante, as produções da Warner Brother e da Metro Goldwyn Mayers também são praticamente a mesma coisa.

Adorno e Horkheimer afirmam que o mundo inteiro agora é visto pelas lentes da indústria cultural. A velha experiência que os telespectadores tinham ao sair do cinema, quando achavam que as ruas eram uma continuação do que eles tinham assistido, se tornou agora o padrão para toda produção da indústria cultural. A sensação é a de que os produtos da indústria cultural reproduzem exatamente o cotidiano, a vida como ela é.

Esta tendência se agudizou de tal maneira que deu origem a produções como o Big Brother, por exemplo. O programa não oferece nada mais que a reprodução da vida cotidiana, pessoas presas em uma casa, fazendo exatamente as mesmas coisas que fazemos nas nossas. 

Este tipo de programa apresenta ainda uma outra característica da indústria cultural, que é a “heroização do medíocre” (“Heroisierung des Durchschnittlichen”). Basta uma participação duradoura no programa, aliada a uma boa aparência, para obter o status de "subcelebridade do momento" e, com isso, ter o privilégio de emprestar sua imagem à publicidade capitalista. Adorno e Horkheimer afirmam que a afirmação de Sócrates, de que o Belo é útil, ironicamente se cumpriu na indústria cultural.

Características da indústria cultural

Algumas das características da indústria cultural são 1) a expropriação do esquematismo, 2) a classificação de cada indivíduo em um “estilo” e 3) o fetichismo dos bens culturais.

Quanto ao primeiro item, isso significa que a indústria cultural rouba dos indivíduos sua capacidade de esquematismo, uma categoria que os autores tomam de empréstimo da Crítica da razão pura, de Immanuel Kant.

O filósofo de Königsberg afirma que para formar o conhecimento, dependemos de duas coisas: daquilo que é dado pelos sentidos e daquilo que nós próprios oferecemos pelo intelecto. Para que haja uma interação entre esses dois mundos tão distintos, no entanto, é necessário que haja uma terceira instância que seja homogênea de um lado com a categoria e, por outro, com aquilo que aparece. Esta representação mediadora deve ser pura, vazia de todo conteúdo empírico e, ao mesmo tempo, enquanto deve ser também intelectual, deve ser também perceptiva. Tal representação é o esquema transcendental.

É claro que tem de haver um terceiro termo, que deva ser por um lado, homogêneo à categoria e, por outro, ao fenômeno e que permita a aplicação da primeira ao segundo. Esta representação mediadora deve ser pura (sem nada de empírico) e, todavia, por um lado, intelectual e, por outro, sensível. Tal é o esquema transcendental. (Immanuel Kant, Crítica da razão pura)

A concepção kantiana original de esquematismo requer a atividade de uma forte subjetividade (o sujeito do iluminismo). O sujeito é capaz de fazer uma interpretação própria em relação às suas posições morais e também das percepções intelectuais mediadas que lhe dão suporte.

A indústria cultural expropria o esquematismo, de forma que o elemento pessoal necessário para ter uma posição própria é substituído por uma atividade sugerida, praticamente imposta pelas agências da indústria cultural, uma espécie de “chave” para decodificar suas mensagens.

Dizendo de outra forma, a indústria cultural fornece não apenas a obra, mas também sua interpretação. Adorno e Horkheimer afirmam que o esquematismo é “o primeiro serviço que ela entrega ao cliente”.

Quanto ao segundo item, o consumo de um estilo, a indústria cultural tem um nicho específico para cada um, para que ninguém fique de fora. Os autores afirmam que a diferença entre filmes de tipo A e B não diferenciam tanto as obras em si, mas seus consumidores.

Se um indivíduo gosta de comédia romântica, então há filmes e livros para ele. Da mesma forma, se outro gosta de ação, aventura, drama ou terror, sempre há algo para cada um.

Há um nicho inclusive para quem é “cult”. Um exemplo: o indivíduo chega em uma loja, vê um filme chamado O anjo exterminador, de um diretor desconhecido chamado Luís Buñuel, mas passa direto, pois a obra não lhe chama a atenção. O filme, antigo e em preto e branco, não parece interessante. Ele então percebe que ele está na seção de filmes “cult”, e este label muda sua percepção da obra. Ele pensa agora que o filme pode ser do seu gosto, pois ele se considera “cult”. Esta é uma forma de apropriação típica da indústria cultural, embora a própria obra não seja um produto dela.

O terceiro item diz respeito ao fetichismo dos bens culturais. Significa que, para o indivíduo, é mais importante comprar a mercadoria, ou ser visto indo ao teatro ou ao cinema (para parecer bem informado), por exemplo, do que propriamente passar por uma experiência estética. É por isso que várias pessoas hoje preferem comprar discos ou filmes do que os assistir gratuitamente em alguma plataforma de streaming.

Conclusão

A indústria cultural deve ser vista como uma lógica de produção e apropriação de bens culturais. A produção em série das obras completas de Beethoven, por exemplo, não transforma sua obra em produto da indústria cultural apenas pelo fato de ter sido gravada em mídias eletrônicas e reproduzida em série.

Da mesma forma, é possível que criadores “independentes” possam produzir indústria cultural mesmo que sua obra não seja reproduzida aos milhares, através das técnicas industriais de reprodução de mídias.

Quando o indivíduo, por exemplo, ouve Beethoven meramente por “status”, por ser "cult", esta é uma forma de apropriação que transforma Beethoven em um produto da indústria cultural, embora a obra em si não o seja.

Referências

ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialektik der Aufklärung. Philosophische Fragmente. Frankfurt: Fischer Verlag, 2019.

DUARTE, Rodrigo. The cultural industry in Brazil. Disponível em https://www.academia.edu/1287636/The_Culture_Industry_in_Brazil. Acesso em 14/12/2020.

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