O argumento ontológico de Anselmo de Aosta - uma prova da existência de Deus baseada apenas na razão

Desde sua primeira elaboração na obra Proslógio (1078), de Anselmo de Aosta, o argumento ontológico para a prova da existência de Deus percorreu uma significativa trajetória na história da filosofia. Descartes, Spinoza e Leibniz o reformularam na modernidade, e Kant, em sua Crítica da razão pura, identificou que todos os outros possíveis tipos de provas da existência de Deus o pressupõem. Novas versões do argumento surgiram também no século XX, destacando-se as de Kurt Gödel e Alvin Plantinga.

Durante séculos, o argumento “ontológico” não teve essa denominação. Tanto Anselmo quanto Descartes lhe caracterizavam apenas como meum argumentum – meu argumento. Leibniz fala apenas de um argumentum dudum inter Scolasticos celebre et a Cartesio renovatum – um argumento muito celebrado entre os escolásticos, agora renovado por Descartes. O primeiro a descrever o argumento como ontológico foi Kant. O termo “ontologia”, no entanto, apareceu na história da filosofia cerca de seiscentos anos depois de Anselmo, de modo que seu argumento foi perfeitamente aceitável, por um longo período, como uma demonstração que não recorria propriamente à ontologia enquanto tal. 

Anselmo inicia seu argumento com a definição de “um ser do qual não é possível pensar nada maior”. Mesmo que um insipiente (“incrédulo” ou “tolo”) negue sua existência, ele é capaz de compreender ao ouvir as palavras “o ser do qual não é possível pensar nada maior”. Mesmo que ele não admita a existência desse ser na realidade, ele se encontra pelo menos em sua inteligência.

Ao afirmar que o insipiente compreende “o ser do qual nada maior pode ser concebido”, Anselmo quer apenas salientar que não há nisso nenhuma dificuldade. A compreensão do insipiente neste ponto parece ser independente de qualquer compreensão da própria existência desse ser. Por uma questão de argumentação dialética, Anselmo requer do insipiente apenas que ele compreenda esta expressão. 

Ter a ideia de um objeto na inteligência, no entanto, é bem diferente de compreender que este ser realmente exista. Um pintor, por exemplo, já tem em sua mente a obra que pretende pintar antes de executá-la, mas nada compreende de sua existência real, pois ela ainda não existe. Somente quando a tiver pintado é que ele compreenderá também sua existência.  Anselmo ressalta com este exemplo que não basta ser capaz de imaginar um objeto para que ele exista também na realidade. Seu único objetivo é mostrar que algo pode existir somente na ideia, sem existir na realidade.

Resultaria em uma contradição, porém, se “o ser do qual não é possível pensar nada maior” existisse somente na inteligência. Fosse este o caso, “poder-se-ia pensar que há outro ser existente também na realidade; e que seria maior”.  Segundo Anselmo, “se, portanto, ‘o ser do qual não é possível pensar nada maior’ existisse somente na inteligência, este mesmo ser, do qual não se pode pensar nada maior, tornar-se-ia o ser do qual é possível [...] pensar algo maior; o que [...] é absurdo”. Logo, conclui Anselmo, “o ser do qual não é possível pensar nada maior’ existe, sem dúvida, na inteligência e na realidade”. 

Ao reduzir ao absurdo a afirmação do insipiente de que “o ser do qual nada maior pode ser pensado” não existe na realidade, Anselmo conclui que deve-se pensar, portanto, este ser como existindo na realidade. Neste passo da argumentação, cabe observar, Anselmo ainda não provou que Deus existe, tendo afirmado tão somente que “"nós”" acreditamos que Deus seja “"aquilo do qual nada maior pode ser pensado”". Ele pensa ter estabelecido, neste ponto, apenas a existência deste ser, mas ainda não equacionou a identidade deste ser a Deus. 

O próximo passo do argumento é então afirmar que aquilo que se pode dizer do “ser do qual nada maior pode ser concebido” pode também ser dito sobre Deus. O argumento de Anselmo tem, segundo Glymour, a seguinte estrutura lógica:

Premissa 1: Podemos conceber um ser do qual nada maior pode ser concebido.

Premissa 2: O que quer que seja concebido existe no entendimento de quem o concebe.

Premissa 3: Aquilo que existe no universo de quem o concebe e também existe na realidade é maior do que algo similar que existe apenas no entendimento de quem o concebe. 

Portanto, um ser concebido, do qual nada maior pode ser concebido, deve existir na realidade assim como no entendimento.

Premissa 4: Deus é um ser do qual nada maior pode ser concebido.

Conclusão: Deus existe na realidade.

O ponto nodal da afirmação de Anselmo é que se “"o ser do qual nada maior pode ser concebido”" existe no entendimento, ele não pode existir somente no entendimento. Este passo de sua argumentação pode ser compreendido de duas maneiras: 1) que é maior, em geral, existir na realidade do que existir apenas no entendimento ou 2) que é maior, especificamente no caso do “"ser do qual nada maior pode ser concebido", existir na realidade do que apenas no entendimento.  A justificativa para a primeira interpretação seria consistente com uma perspectiva agostiniana ou neoplatônica no que diz respeito à bondade ou à excelência de ser. Existência real (esse in re) é melhor do que existência conceitual (esse in intellectu). Há uma correspondência entre a intensidade dos níveis de “"excelência”" e os níveis do ser. Aquilo que está acima na escala do ser é maior do que está abaixo. O que existe na realidade, portanto, tem que ser maior do que sua mera ideia. Por outro lado, Anselmo também pode ser compreendido da segunda maneira, já que seu argumento pode não requerer uma ontologia platônica. Ele requer apenas que, no caso específico do “"ser do qual nada maior pode ser concebido”", o conceito deve conter também tudo que existe em grau máximo. Se ele existe, portanto, in re, ele deve possuir todas as grandezas num sentido que excede tudo aquilo que existe apenas in intellectu.

Variantes da expressão “"o ser do qual nada maior pode ser pensado”" podem ser encontradas em alguns filósofos anteriores a Anselmo.  Em Santo Agostinho, por exemplo, elas ocorrem em pelo menos duas passagens (Confissões, VII, 4, 6 e De Moribus, II, II, 24), cuja linguagem é muito similar à que foi utilizada posteriormente por Boécio em sua Consolações da Filosofia. O tipo de argumento formulado por Boécio, entretanto, parece ter sua origem não em Agostinho, mas em Aristóteles. Simplício afirma que o Estagirita apresentou uma prova para a existência de Deus em sua obra perdida Sobre a filosofia, na qual afirmava que “"onde há um melhor há também o melhor, que seria o divino”". 

Segundo Koyré, a originalidade do argumento de Anselmo está, contudo, na maneira em que ele combina o princípio de perfeição com o princípio da contradição, pois suas ideias fundamentais não são em si novas. O arranjo, a forma e a aplicação destes elementos tradicionais é que são absolutamente pessoais e que expressariam a novidade trazida pelo monge de Bec.

O princípio de perfeição, herdado da filosofia neoplatônica, permite postular, a priori, uma existência real e passar da perfeição ao ser. Haveria, no entanto, importantes diferenças entre Plotino, por um lado, e Agostinho e Anselmo, como seus discípulos, por outro. 

Para Plotino há um paralelismo estrito entre o ser e a perfeição, entre os graus de perfeição e os graus de ser. Ao mais alto grau de perfeição corresponde o mais alto grau do ser, e à perfeição absoluta, o ser absoluto; e à causa da simplicidade absoluta do Uno supremo, deve-se dizer que para ele o ser não se difere da perfeição. Para Santo Agostinho, o ser, a existência, é um bem e, sendo uma perfeição, não pode faltar ao ser absolutamente perfeito, que é Deus. Não mais que seus outros atributos, a existência não pode ser separada nem de suas outras perfeições, nem de sua própria essência. Deus é o sumo ser. 

Não se pode encontrar no argumento de Anselmo, entretanto, nem no sentido plotiniano e nem no sentido agostiniano, uma identificação entre o ser e a perfeição. Tudo o que Anselmo afirma é que um ser dotado de perfeição e de existência é mais perfeito que um ser semelhante privado de existência, o que não implica que a existência é, por si só, uma perfeição.  Neste sentido o argumento de Anselmo não é exatamente ontológico, ou uma prova direta de que da essência de Deus deriva-se necessariamente a sua existência. Tal prova pressuporia uma noção clara e distinta da essência divina, e Anselmo nega a possibilidade de tal conhecimento. O argumento de Anselmo é uma prova indireta. 

Glauber Ataide

Este trecho é parte do meu artigo que se encontra no terceiro capítulo do livro Filosofia da religião: problemas da Antiguidade aos tempos atuais, publicado pelas Edições Loyola.

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