Quão racional é a sua crença em Deus? Esta pergunta pode parecer estranha, já que crer ou não em Deus, para o senso comum, é apenas uma questão de fé, não havendo espaço para a razão ao se falar sobre tal tema. A filosofia nos mostra, todavia, que isso não é verdade, e que tanto a fé como o ateísmo podem ser racionalmente justificados.
Argumentos para provar a existência de Deus, ou de uma primeira causa do universo, existem pelo menos desde Aristóteles. Há no Ocidente uma tradição chamada teologia natural, ou religião natural, a qual afirma que o conhecimento de Deus pode ser obtido através de processos naturais de raciocínio, sem envolver a revelação (como a Bíblia, por exemplo). Por vezes compreendida como uma área da própria filosofia, a teologia natural foi importante o suficiente para ser criticada por David Hume, em sua obra Diálogos sobre a religião natural, e também por Immanuel Kant em sua Crítica da razão pura.
Apresentaremos a seguir um argumento a favor da existência de Deus que é parte desta tradição. Tomás de Aquino (1225-1274), filósofo e teólogo italiano, desenvolveu cinco argumentos com este objetivo, os quais aparecem de maneira apenas esquemática em sua principal obra, a Suma teológica. Nossos esforços se restringem a analisar o terceiro destes argumentos, chamado também de terceira via.
O que é um argumento cosmológico?
Chamamos de argumento cosmológico um conjunto de provas que buscam demonstrar a existência de uma razão suficiente ou causa primeira para o surgimento de todo o universo. Estes argumentos podem ser agrupados em três categorias básicas: 1) o argumento cosmológico Kalam da causa primeira do universo; 2) o argumento cosmológico tomista da sustentação do mundo pelo fundamento do ser, e; 3) o argumento cosmológico de Leibniz da razão suficiente para a existência de algo em vez de sua não-existência. Entre os filósofos que propuseram tais argumentos encontram-se Platão, Aristóteles, Avicena, Al-Ghazali, Maimônides e Santo Anselmo.
Tomás de Aquino desenvolveu cinco vias para demonstrar a existência de Deus. Cada uma delas toma como ponto de partida algum aspecto do mundo que apontaria para a existência de seu criador, e vamos discutir aqui brevemente a terceira delas, também chamada de via da contingência.
A terceira via de Tomás de Aquino
O objetivo da terceira via é explicar por que é necessário que Deus exista. Tomás de Aquino opera aqui com as categorias aristotélicas de necessidade e contingência , e formula assim seu argumento na Suma Teológica:
“A terceira via é tomada do possível e do necessário. Ei-la. Encontramos, entre as coisas, as que podem ser e não ser, uma vez que algumas se encontram que nascem e perecem. Consequentemente, podem ser e não ser. Mas é impossível ser para sempre o que é de tal natureza, pois o que pode não ser não é em algum momento. Se tudo pode não ser, houve um momento em que nada havia. Ora, se isso é verdadeiro, ainda agora nada existiria; pois o que não é só passa a ser por intermédio de algo que já é. Por conseguinte, se não houve ente algum, foi impossível que algo começasse a ser; logo, hoje, nada existiria: o que é falso. Assim, nem todos os entes são possíveis, mas é preciso que algo seja necessário entre as coisas. Ora, tudo o que é necessário tem, ou não, a causa de sua necessidade em um outro. Aqui também não é possível continuar até o infinito na série das coisas necessárias que tem uma causa da própria necessidade, assim como as causas eficientes, como se provou. Portanto, é necessário afirmar a existência de algo necessário por si mesmo, que não encontra alhures a causa de sua necessidade, mas que é a causa da necessidade para os outros: o que todos chamam Deus.”
Este argumento parte do princípio de que aquilo que pode não ser, um dia não existia. Se, no entanto,
“...todas as coisas podem não ser (são contingentes), em dado momento nada existia na realidade. Porém, se isso for verdade, também agora não existiria nada (porque o que não existe não começa a existir a não ser por causa daquilo que já existe), a menos que não exista alguma coisa de necessariamente existente. Concluindo: nem tudo pode ser contingente, mas é preciso que haja algo necessário, e é aquilo que costumeiramente se chama Deus.”
Um ser só pode ser criado por algo que já existia antes dele. Enquanto seres humanos, somos também causados por um outro ser, pois somos o efeito de uma cadeia de causalidades. Se regredirmos até o início dessa cadeia, só poderemos encontrar ali, como causa originária, um ser cuja existência seja necessária . Todas as criaturas que nascem, crescem e morrem são contingentes, o que significa dizer que não possuem o ser em virtude de sua essência. Se quisermos então explicar a atual passagem do estado possível ao estado atual, é preciso admitir uma causa que não foi e não é de modo algum contingente ou possível, porque está sempre em ato. Tomás de Aquino conclui, então, que este ser necessário é Deus.
A terceira via de Tomás de Aquino talvez seja a de mais difícil interpretação, ou, pelo menos, a que mais suscita polêmicas. A inserção de uma “causa de necessidade” no meio do argumento, que seria desnecessário caso seu único objetivo fosse demonstrar a existência de Deus, dá margens a diversas interpretações.
Ela também apresenta pelo menos duas particularidades em relação às outras quatro vias. A primeira é que ela não é apresentada na Suma contra os gentios entre as outras provas da existência de Deus. Ela aparece apenas dois capítulos à frente, como prova da eternidade de Deus.
Assim, seu objetivo não é apenas provar a existência de Deus, mas também sua eternidade. A razão para isso, segundo Owens (1971, p. 23), é que somente provando que Deus é necessariamente existente, de acordo com o método seguido na terceira via, é que ele pode demonstrar a eternidade divina. Outra particularidade, decorrente da primeira, é que na Suma contra os gentios ela é apresentada fora da lista de argumentos pelos quais outros filósofos e católicos provaram que Deus existe, ou seja, não é expressamente colocada numa lista de razões usadas por outros. Assim, ela é apresentada como um argumento do próprio Tomás de Aquino.
Contingência
Tomás de Aquino inicia sua terceira via partindo da observação de que, como há coisas que passam pelos processos de geração e corrupção, essas são possíveis existir e não existir. Mas o que logo chama a atenção é o fato de que as coisas que sofrem geração e corrupção são apenas algumas entre as coisas, não todas. Isso é, por “coisas” Tomás de Aquino está se referindo tanto àquilo que é observável no terreno da experiência quanto àquilo que não é. Entre essas últimas podemos elencar anjos, almas, corpos celestes, etc.
Se é verdade, porém, que essas coisas são possíveis existir e não existir, tal não poderia se dar com todas, pois isso leva à conclusão de que em algum momento seria possível que nada existisse. E se em algum momento nada existisse, nada nunca viria a existir, pois algo que não é necessário só pode receber sua existência de algo que é necessário, seja sua necessidade causada por outro ou por si mesmo. A noção de necessidade, portanto, parece estar intimamente relacionada com a de causa eficiente nesta via.
Segundo Owen (1971, p.26), essas coisas estão abertas tanto à existência quanto à não existência, mas não são elas que se autodeterminam para a existência. Essa determinação deve vir de outra causa, que será uma causa eficiente. Assim, é a causa eficiente de algo o que lhe confere existência.
Necessidade causada e necessidade em si mesmo
Seria esta causa eficiente, todavia, também causada por outra coisa? Se for o caso, é preciso então que esta causa tenha uma outra, e assim sucessivamente, até que se chegue a uma primeira causa eficiente, pois não se poderia levar esta série ao infinito, como demonstrado na segunda via.
De acordo com Owens (1971, p. 27), o argumento procede então a demonstrar a doação de ser da existência através da causalidade eficiente. Havendo coisas contingentes deve haver também uma causa eficiente necessária que lhe dá o ser; e se essa causa é necessária não por si mesma, mas por uma outra, então deve haver uma causa eficiente que é necessária por si mesma.
Mas por que a terceira via tentaria provar a existência de Deus através da causalidade eficiente se isso já foi feito pela segunda via? Isso parece apontar que a terceira via, na verdade, não trata apenas disso, mas de outra coisa além da causalidade eficiente.
Tomás de Aquino não está apenas dizendo que no início da série deve haver uma primeira causa eficiente, mas também afirma que nas coisas há aquelas que são necessárias não por si mesmas, mas que receberam sua necessidade de uma outra. Mas a questão é: qual a relevância, no argumento, dessas coisas necessárias cuja necessidade é causada por outra coisa? Não se conseguiria demonstrar que é necessária uma primeira causa eficiente mesmo sem estas coisas cuja necessidade é causada?
De forma geral, o argumento mostra que se há seres contingentes, então é necessário que exista também uma causa eficiente necessária que lhes tenha conferido existência. Mas se a necessidade desta causa eficiente não é em si mesma, então é necessário retroagir na série causal até a primeira causa eficiente cuja necessidade está em si mesma. Mas este passo parece desnecessário se o objetivo é apenas chegar à primeira causa eficiente.
A noção de possibilidade
Outra noção importante subjacente no argumento é a de possibilidade. Tanto na Suma contra os gentios quanto na Suma Teológica o argumento é apresentado em termos de possibilidade, observa Owens (1971, p. 28). Segundo o comentador, a distinção aqui se dá entre uma possibilidade de existência que está na causa eficiente da coisa – que é diferente dela mesma - e uma possibilidade de existência que é encontrada na própria coisa.
Esta distinção é importante por esclarecer o desenvolvimento do argumento. No De Potentia, a interpretação de Tomás de Aquino sobre Avicena mostra que
“a essência de uma criatura é sua natureza considerada como potencialidade para ser, enquanto o ser está acima da essência. Considerada apenas em si, portanto, a natureza de uma coisa criada é algo que pode vir a ser, mas que em si mesma não tem o ser. Qualquer necessidade de ser que pode ser encontrada em si deverá vir de outra coisa cuja natureza é seu próprio ser. Consequentemente este último é em virtude de seu próprio ser necessário.” (OWENS, 1971, p. 29)
Para todas as coisas criadas a existência está acima da essência. Mesmo que uma coisa criada, então, seja necessária, sua necessidade não está em si mesma, mas é recebida de um ser “que é necessário em virtude da identidade da existência com a essência.” (OWENS, 1971, p. 29)
Sobre este ser, Craig e Moreland (2005, p. 568) afirmam que
“Esse é um ser não composto de essência e existência, e portanto, não necessita de causa mantenedora. Não podemos dizer que a essência desse ser inclui a existência como uma de suas propriedades, porque a existência não é uma propriedade, mas um ato, a representação da essência. Portanto, devemos concluir que a essência desse ser é simplesmente existência. Em certo sentido, esse ser não possui essência, ao contrário, é um ato puro de ser, não coagido por qualquer essência.”
Quanto às coisas cuja existência é necessária, é sua própria natureza que determina sua necessidade, apesar de sua natureza ser causada pelo próprio Deus e de sua existência depender do livre arbítrio divino. Segundo Owens (1971, p. 34),
“a estrutura geral deste argumento parece ser de que as criaturas imperecíveis possuem necessidade absoluta em si mesmas devido à sua existência, ainda que sua existência seja dependente de uma vontade que é livre para continuar lhe concedendo ou lhe retirá-la. A necessidade absoluta é adquirida da vontade divina, mas ainda assim é absoluta porque essas criaturas são causadas por Deus em uma natureza que não tem a possibilidade da não-existência. Mas a razão de terem esta natureza é que Deus quis que fosse assim.”
Crítica à terceira via
Deparamo-nos aqui com o chamado o problema do salto, ou gap problem. Considerando que exista uma causa primeira, segue-se daí qualquer coisa de interesse religioso? Haveria um salto entre a afirmação de que há uma primeira causa e a de que existe um Deus? A questão ainda não está resolvida, tendo sido apenas deslocada para outro ponto: como reconhecer que esses atributos divinos pertencem ao deus cristão, e não a algum outro?
Mesmo que o universo tenha uma explicação para sua existência, esta não precisa ser externa: ela pode se fundamentar na própria necessidade de sua natureza. David Hume sugeriu que o universo é um ser metafisicamente necessário ao perguntar: “Por que o universo material não pode ser necessariamente existente?”. De fato, “como pode algo, que existe desde a eternidade, ter uma causa, já que a relação implica uma prioridade de tempo e de princípio de existência?”
Seria a terceira via de Tomás de Aquino capaz de responder a esta objeção ateísta? Qual seria a relação entre a contingência metafísica e a contingência natural das coisas?
“Com certeza, as coisas são naturalmente contingentes no que tange sua existência contínua, como dependente de uma miríade de fatores, incluindo-se massas de partículas e forças fundamentais, temperatura, pressão, nível de entropia, etc., mas a contingência natural não é suficiente para estabelecer a contingência metafísica das coisas, no sentido de manter sua adição contínua à essência, a fim de que não sejam aniquiladas espontaneamente. Se o argumento de Tomás nos conduz por fim a um ser absolutamente simples cuja essência é existir, então alguém poderia ser levado a negar que os seres são metafisicamente compostos de essência e existência, se tal ideia de um ser absolutamente simples provar ser ininteligível.”
Percebe-se então que a terceira via de Tomás nos encaminha novamente para uma discussão de natureza teológica, que é a simplicidade divina. E se a natureza deste ser simples é apenas existir, isso nos remete ao argumento ontológico para a prova da existência de Deus e sua relação com as provas cosmológicas.
Immanuel Kant, em sua Crítica da razão pura, mostrou não só a relação entre os argumentos ontológico e cosmológico, mas também por que eles não funcionam. Enquanto o argumento ontológico parte da ideia de um ser “do qual nada maior pode ser pensado”, o argumento cosmológico parte do cosmos, isto é, do mundo, para chegar até sua causa primeira. Kant mostrou que, na verdade, o argumento cosmológico pressupõe o argumento ontológico, e tendo em vista que este é inválido, o primeiro também não se sustenta.
Segundo Bertrand Russell, Kant tem razão ao afirmar que o argumento cosmológico pressupõe o argumento ontológico. Se a existência do mundo só pode ser atribuída à existência de um ser necessário, então tem que haver um ser cuja essência envolva existência, pois é isso que um ser necessário é. Se é possível, portanto, que haja um ser cuja essência envolva existência, então a razão pura, sem apelo à experiência, pode definir tal ser, cuja existência será a conclusão de um argumento ontológico.
De forma geral, a terceira via de Tomás de Aquino enfrenta pelo menos três dificuldades. A primeira é passar da contingência natural à contingência metafísica das coisas, para demonstrar que o universo não poderia ser ele próprio necessário devido à sua natureza. A segunda é estabelecer que esta causa primeira seja efetivamente o deus cristão, e não o deus de alguma outra religião. E a terceira – e talvez a mais séria – é sua dependência do argumento ontológico e a crítica de Immanuel Kant de que existência não é predicado.
Glauber Ataide
BIBLIOGRAFIA
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DAVIES, Brian. Aquinas's Summa theologiae: critical essays. Maryland: Rowman & Littlefield Publishers, Inc, 2006.
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MARCONDES, Danilo. Iniciação à História da Filosofia. 11. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2007.
MORELAND, J.P.; CRAIG, William Lane. Filosofia e Cosmovisão Cristã. São Paulo: Edições Vida Nova, 2005.
OWENS, Joseph. Mediaeval Studies, v. 33. Toronto: Pontifical Institute of Mediaeval Studies, 1971.
PRUSS, Alexander R. The Leibnizian cosmological argument. In: CRAIG, William Lane; Moreland, J.P. (Org). The Blackwell Companion to Natural Theology. United Kingdom: Blackwell Publishing Ltd, 2009.
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia. Patrística e Escolástica. 3. ed. São Paulo: Paulus, 2007.
RUSSELL, Bertrand: Philosophie des Abendlandes. München: Piper Verlag, 2019.
TURNER, Denys. Faith, reason, and the existence of God. Cambridge: The Press Syndicate of the University of Cambridge, 2004
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