O amor platônico não é um amor idealizado, distante, em que o amante não revela seu desejo à pessoa amada, sem contato físico ou relação sexual. Esta visão do amor, na verdade, devemos muito mais ao romantismo do que propriamente a Platão1.
Para compreendermos o que o filósofo grego entendia por amor, voltemo-nos para a obra em que ele mais se ocupa do tema, que é O banquete. O livro tem este título porque o diálogo se passa literalmente em um "banquete", no qual vários convidados estão discutindo o tema do amor e apresentando suas opiniões. A tradução "banquete", porém, é enganosa, pois o nome grego original é "Symposia", que se referia a um tipo de festa na antiga Atenas que não envolvia a consumação de comida, mas apenas de bebidas. As pessoas comiam antes de participar destes eventos, chegando lá já satisfeitos. Em português, o termo "banquete" se refere principalmente à comida, o que acaba encobrindo e desvirtuando um pouco o significado original.
Nestes "simpósios", os convidados bebiam, conversavam e se divertiam na companhia de cortesãs que aumentavam a temperatura sexual do ambiente. Havia também pelo menos um flautista que fazia música de fundo, e os convidados passavam de boca em boca taças de vinho algumas vezes decoradas com imagens eróticas. Não se sabe ao certo o quanto de relações sexuais havia nestes eventos, mas é certo que a atmosfera era de conversa relaxada e tensão erótica ao mesmo tempo.
O "simpósio" de Platão, contudo, é um pouco diferente dos simpósios reais de sua época. Em sua obra, os participantes já começam estando de ressaca por causa de uma celebração realizada no dia anterior, e eles decidem não beber muito naquele dia. O flautista é mandado embora, não há cortesãs e a conversa não é espontânea, já que cada um deve fazer um discurso sobre um tema pré-escolhido: o amor.
Cada um dos participantes apresenta, então, um discurso sobre o amor. Um dos mais interessantes é o de Aristófanes, famoso na Atenas de sua época e autor da obra As nuvens. Segundo o mito que ele apresenta, os humanos eram inicialmente divididos em três espécies, ou três tipos: homens, mulheres e andróginos (seres que possuíam ambos os sexos). Certo dia, devido à arrogância que os levou a atentar contra os deuses, os humanos foram punidos por Zeus e divididos ao meio. Desde então, cada um busca sua outra metade, de modo que os que eram totalmente homens buscam sua outra metade homem, os que eram totalmente mulheres buscam sua outra metade mulher, e os que eram andróginos buscam sua outra parte do sexo oposto. Este mito de Aristófanes explicaria por que cada um busca se "completar" no amor, ou seja, mostra que o objetivo do amor é encontrar a outra metade há muito perdida.
Sócrates é o último a falar. O discurso apresentado pela boca do filósofo grego é, provavelmente, a própria versão de Platão sobre o tema. Segundo Sócrates, o amor (Eros) é filho de Poros (recurso, riqueza, fartura) e Penia (pobreza, necessidade, falta), tendo os atributos de ambos. De maneira geral, o que Sócrates afirma é que a isca do amor é a beleza. Eros incita os amantes pelo atrativo da beleza, de modo que, no início de um relacionamento, é a beleza dos corpos o que atrai primeiro. A beleza é aquilo que se percebe e se sente antes ser capaz de pensar, de refletir, de raciocinar. É algo automático, inconsciente, involuntário. A beleza não é, contudo, apenas a isca: ela é, no final das contas, tudo o que o amor busca, e não apenas no amor sexual, mas em todas as áreas da vida.
A beleza se faz presente não apenas em um amante, mas em vários corpos, os quais podem ser amados ao longo de um tempo ou simultaneamente. A isca é literalmente a beleza. Em épocas de relacionamentos através de aplicativos isso é muito claro: pela tela de um smartphone escolhe-se, pela foto apenas, um potencial parceiro. O que importa neste primeiro momento é apenas a imagem, a forma física, a beleza, sem conhecer nada mais do indivíduo, sem nem ao menos ouvir sua voz.
Todos os corpos belos são perecíveis, e o que os amantes buscam, no final das contas, é a beleza duradoura. O que querem as pessoas ao buscar diversos parceiros belos no decorrer de toda uma vida? Eles buscam aquilo que é partilhado por todos os corpos belos, que é a própria forma do Belo. O Belo em si não é encontrado, todavia, por um processo de abstração. Esta é uma leitura muito comum e equivocada que se faz de Platão. Para o filósofo grego, o Belo não é um conceito, ou apenas uma entidade linguística ou mental. O Belo é, na verdade, um eidos, uma forma, uma essência, com existência que não é a existência de um conceito, como em Aristóteles. O Belo tem estatuto ontológico para Platão.
Quando os amantes percebem que eles próprios são perecíveis, e que também o amor é, de certa forma, finito, eles começam a trabalhar no sentido de superar essa finitude. O amor, enquanto trabalho de Eros, não é apenas o amor ou o desejo do Belo, mas o desejo de "dar à luz no Belo", o que pode ser feito tanto no amor heterossexual quanto no homossexual. No amor heterossexual, pode-se gerar o Belo a partir do Belo, ou seja, ter filhos. A procriação é a forma mais próxima que um ser mortal pode chegar da perpetuidade e da imortalidade. Ter filhos é uma maneira de o mortal imitar o imortal. Diotima explica a Sócrates que, ao observarmos a natureza, vemos como os animais, ao serem tomados pelo desejo de procriar, caem vítimas de uma grande paixão que os leva, em primeiro lugar, a unir macho e fêmea e, depois, a fazerem de tudo para sustentar suas crias, enfrentando quaisquer que sejam os perigos. Já no amor homossexual, dá-se à luz no Belo através de grandes façanhas culturais, uma espécie de sublimação freudiana. O amor homossexual, na visão de Platão, seria culturalmente mais rico, mais produtivo. Essas belezas geradas pelo amor seriam, por exemplo, as leis de uma cidade, a poesia clássica, as artes, as ciências, etc. Os filhos deixados por Homero e Hesíodo, por exemplo, foram suas obras literárias, as quais lhes deram fama e glória imortais. Um artista, ao produzir uma obra de arte, coloca parte de seu ser em sua criação espiritual, de modo que algo dele permanece mesmo após sua morte.
O amor platônico seria, portanto, um amor impulsionado por Eros em todos os momentos, em todas as áreas da vida, e por isso nunca deixaria de ser erótico. Sendo um amor erótico, ele envolve a conjunção carnal, a relação sexual, e não tem a ver com a visão comum produzida pelo romantismo de que seria um amor que ficaria apenas no "mundo das idéias". O que está realmente em jogo no amor platônico é que o desejo de "dar à luz no Belo", impulsionado por Eros, filho de Poros e Penia, leva os amantes à busca do belo e do saber. O amor platônico, para resumir, é um amor no qual os amantes melhoram a alma um do outro através da filosofia.
Notas
1. Uma das razões deste equívoco talvez seja a leitura superficial de Platão como o filósofo que desenvolveu a "teoria das idéias", como aquele que criou um outro mundo no qual existem as "idéias" das quais o mundo físico é apenas uma "cópia". Desta leitura equivocada de sua teoria geral das idéias para a concepção de que o "amor" também seria, como as outras idéias, algo fora do mundo físico, real e efetivo, basta um pequeno salto.
Outra razão deste equívoco pode se dar pela própria leitura de "O banquete". Durante o diálogo, um belo e jovem general e político, Alcibíades, chega bêbado e conta sobre um episódio com Sócrates. Ele afirma que uma vez, estando sozinho com o filósofo de Atenas, este resistiu às suas investidas sexuais, e daí muitos chegaram a interpretar esta recusa de Sócrates como um modelo do que seria o "amor platônico".
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