Diz a lenda que Robert Johnson (1911-1938), um jovem afro-americano, vendeu sua alma ao diabo em troca da habilidade de tocar blues como ninguém. O pacto aconteceu em uma encruzilhada, quando ele se encontrou com um homem muito alto (o próprio Satã) que afinou seu violão. Johnson gravou 11 discos em vida e mais 12 foram lançados após sua morte. Relatos dão conta de que na noite em que morreu, ele tocava de quatro, com espumas saindo de sua boa, como um animal.
Desde as remotas épocas do blues, passando pelo rock’n roll até o metal extremo, a presença do demônio e seus símbolos é uma constante nas letras e capas de discos do estilo. Seja tal associação mera estratégia publicitária ou uma real adesão religiosa, o que esta associação entre metal e satanismo indubitavelmente representa é uma crítica social, uma contestação aos valores sociais e morais vigentes.
Esta crítica encontra expressão no campo da religião, e não em outro, justamente pelo lugar e papel que esta tem na estrutura da sociedade. A religião é a esfera de consolidação, de conservação, de manutenção dos valores de determinado corpo social. A crítica à religião dominante de uma sociedade significa, portanto, uma crítica aos valores sociais dominantes daquela sociedade. Esta nos parece ser a chave de leitura que melhor nos permite compreender a marcante presença de temas como o satanismo, a blasfêmia e a crítica à religião nas letras do metal extremo.
Esta crítica encontra expressão no campo da religião, e não em outro, justamente pelo lugar e papel que esta tem na estrutura da sociedade. A religião é a esfera de consolidação, de conservação, de manutenção dos valores de determinado corpo social. A crítica à religião dominante de uma sociedade significa, portanto, uma crítica aos valores sociais dominantes daquela sociedade. Esta nos parece ser a chave de leitura que melhor nos permite compreender a marcante presença de temas como o satanismo, a blasfêmia e a crítica à religião nas letras do metal extremo.
Um exemplo claro desta relação entre satanismo e crítica social aparece na letra de Worship him, do álbum homônimo de 1991, da banda suíça Samael. Nela, Satã é associado a valores humanistas e iluministas de oposição à religião:
He is the flame of reason
He is the verb of our thoughts
[...]
He is the fall of the kingdom of ignorance
He is the end of the reign of intolerance
Tradução livre:
Ele é a chama da razão
Ele é o verbo de nossos pensamentos
[...]
Ele é a queda do reino da ignorância
Ele é o fim do reino da intolerância
He is the verb of our thoughts
[...]
He is the fall of the kingdom of ignorance
He is the end of the reign of intolerance
Tradução livre:
Ele é a chama da razão
Ele é o verbo de nossos pensamentos
[...]
Ele é a queda do reino da ignorância
Ele é o fim do reino da intolerância
Satã é a razão, em oposição à fé da religião; contra a ignorância religiosa, Satã é o conhecimento; em oposição à intolerância, Satã representa a tolerância. Esta letra ilustra de forma nítida nossa tese básica de que, na maioria das vezes e para a maioria das bandas de metal extremo, Satã é um símbolo que veicula uma crítica a determinados valores sociais, e não meramente uma figura religiosa em si.
Karl Marx já havia afirmado em sua Introdução à Crítica da filosofia do direito de Hegel que a crítica à religião é o pressuposto de toda crítica, e por isso não devemos tomar a crítica à religião – onde quer que ela apareça, mesmo em letras de metal extremo - meramente como uma questão de natureza religiosa.
De um ponto de vista materialista, a religião é, antes de tudo, um sonho do espírito humano. Era assim que a definia o filósofo alemão Ludwig Feuerbach. Para ele, toda crença religiosa é uma projeção antropomórfica e, como tal, expressa o conceito do homem sobre sua própria natureza. Se o ser humano é capaz de amar, então Deus é capaz de amar infinitamente; se o homem tem força, então Deus é todo-poderoso; se o homem é capaz de conhecer, então Deus é onisciente e conhece absolutamente tudo, etc. Deus seria, na perspectiva de Feuerbach, projeção do ser humano tomado de forma genérica, abstrata. O problema é que, neste processo, o homem se aliena de si mesmo e de tudo que é humano, acreditando que seus valores derivam de uma ordem divina, sobrenatural, e não dele próprio.
Se, para Feuerbach, Deus é uma projeção que o próprio homem faz de si mesmo, para Nietzsche, por sua vez, Deus também é uma projeção, mas não de um indivíduo abstrato e genérico, como o de Feuerbach, mas sim de um povo. Nietzsche mostra, por exemplo, como o Deus dos judeus, no período em que tomaram a terra de Canaã, era um Deus tão forte, poderoso e vingativo quanto o próprio povo de Israel (pois um povo “fraco” e composto apenas de escravos, como o texto bíblico quer nos fazer crer, jamais conseguiria tomar uma terra como eles o fizeram). É por isso que aparece registrado na Bíblia que foi o próprio Deus quem ordenou ao povo de Israel entrar na terra prometida e matar a todos, inclusive crianças. Isso é, o povo projetava sua própria força em seu Deus. Eles entraram na terra e mataram a todos, mas explicavam a si mesmos que isso era o cumprimento de uma ordem divina. Já no período do exílio, quando o povo de Israel estava fraco e escravizado, esta situação social se reflete em seu próprio conceito de Deus, quando ele se transforma então no Deus do amor e do perdão, em um Deus fraco, para resumir. Para Nietzsche, o perdão é a incapacidade de vingança, e por isso o fraco perdoa. E tal degeneração do conceito judaico de Deus se desenvolveu através do cristianismo, até se transformar no conceito de “Deus encarnado”, isso é, em Jesus Cristo, o Deus morto e crucificado.
Este sentido nietzscheano de projeção pode ser observado também nos deuses dos vikings. Por serem um povo que dependia, sobretudo devido a condições sociais, geográficas e climáticas, do saque e da pilhagem para a manutenção de sua sociedade, a moral e as virtudes exigidas para tal eram consolidadas e justificadas em sua religião. Tais características apareciam como ordenadas pelos deuses e também recompensadas por eles. Metade daqueles que morriam em combate, por exemplo, eram recompensados após a morte indo para Valhala, o palácio de Odin.
Tais fenômenos sociais, contudo, não eram percebidos enquanto tais nem pelos judeus, nem pelos vikings, e nem por nenhum outro povo. As explicações que estes forneciam a si mesmos sobre sua própria realidade sempre tomaram formas míticas e religiosas. Um exemplo claro deste ponto aparece na análise de Engels das revoltas chamadas de Guerra dos Camponeses, ocorridas nos países de língua alemã da Europa Central nos anos 1524-1525. Segundo o teórico alemão, embora tais guerras fossem explicadas, em sua época, como motivadas por meras disputas religiosas, sua causa real era, na verdade, a luta entre classes sociais. Não se tratava meramente de um conflito entre protestantismo e catolicismo, ou mesmo entre as alas internas do protestantismo representadas por Lutero e Münzer (teólogo ligado aos camponeses pobres e que fazia oposição a Lutero), mas sim de um conflito entre classes sociais num momento em que a burguesia buscava se desvencilhar dos entraves colocados pelo modo de produção feudal que freavam o desenvolvimento do capitalismo nascente.
Neste mesmo sentido, a crítica à religião nas letras do metal extremo deve ser entendida como expressão artística de contradições sociais, como um grito de protesto à alienação humana, como um ato de rebeldia e insubordinação à ordem social vigente e seus valores.
Conferir existência real a Satanás significaria reconhecer, ainda que em partes, a verdade do cristianismo, o que talvez poucos artistas do gênero estariam dispostos a fazer. O satanismo no metal expressa, na maioria das vezes, uma crítica social não formulada enquanto tal, que se move ainda de forma metafísica, operando através dos símbolos fornecidos pela própria cultura dominante que é objeto desta crítica. A blasfêmia contra o sagrado de uma sociedade expressa subversão, inadequação e inconformidade ao establishment.
Glauber Ataide
Vocalista da banda Morbid Prophecy
Mestrando em Filosofia pela UFMG
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