"O conceito cristão de Deus – Deus como Deus dos doentes, Deus como aranha, Deus como espírito – é um dos mais corruptos conceitos de Deus que sobre a Terra se obtiveram: representa até, possivelmente, o mais baixo nível da evolução declinante do tipo divino. Deus degenerado em contradição com a vida, em vez de ser a sua glorificação e o seu eterno sim! Expresso em Deus o ódio à vida, à natureza, à vontade de viver! Deus, a fórmula para toda a difamação do 'aquém', para toda a mentira do 'além'! O nada divinizado em Deus, a vontade do nada santificada!..." (Nietzsche, O Anticristo)
No aforismo XVIII de O anticristo, Nietzsche usa uma imagem peculiar para se referir ao conceito cristão de Deus: a aranha. É uma imagem forte, de impacto, e que em uma primeira leitura de sua obra nos detém por alguns segundos indagando: por que seria Deus uma "aranha"? Qual a relação entre as duas coisas?
O que o filósofo alemão quer expressar com isso se torna mais claro ao lermos o trecho no idioma original da obra e também o último parágrafo do aforismo anterior.
A primeira frase do aforismo com que iniciamos este texto, em alemão, é:
"Der christliche Gottesbegriff — Gott als Krankengott, Gott als Spinne, Gott als Geist — ist einer der korruptesten Gottesbegriffe, die auf Erden erreicht worden sind..."
Como podemos ver destacado em negrito, a palavra alemã para "aranha" é Spinne, e o que Nietzsche está fazendo aqui é um jogo de palavras entre este termo e o nome do filósofo holandês Spinoza.
Esta relação já estava explicitada no último parágrafo do aforismo anterior (17), o qual reproduzimos abaixo:
"Mas o Deus do 'grande número', o democrata entre os deuses, não se tornou todavia um orgulhoso deus pagão: permaneceu judeu, continuou a ser o deus das esquinas, o deus dos recantos e lugares escuros, de todos os bairros insalubres do mundo inteiro!... O seu reino universal é, agora como dantes, um reino de submundo, um hospital, um reino-soutérrain, um reino-gueto... E ele próprio tão pálido, tão fraco, tão décadent... Até os mais pálidos de entre os pálidos dele se tornaram senhores, os senhores metafísicos, os albinos do conceito. Estes teceram durante tanto tempo em seu redor que, hipnotizado pelos seus movimentos, ele próprio se transformou em aranha, ele próprio se tornou metafísico. Então, voltou a desfiar o mundo a partir de si – sub specie Spinozae. Transfigurou-se então em algo cada vez mais ténue, mais pálido, fez-se 'ideal', 'espírito puro', 'absolutum', 'coisa em si'... A ruína de um Deus: Deus tornou-se 'coisa em si'..."
Neste trecho Nietzsche está falando sobre a decadência do conceito judaico de Deus. A ideia de Deus foi se tornando cada vez mais fraca, mais pálida, etérea, até que praticamente se dissolveu, tornando-se "o nada divinizado". Nietzsche afirma que Deus se transformou então em aranha, mas não uma aranha qualquer: ele se tornou uma aranha sub specie Spinozae.
A referência de Nietzsche é ao conceito de Deus desenvolvido pelo filósofo holandês Baruch de Spinoza, que também era judeu. Associa-se geralmente a ele uma espécie de panteísmo, uma identificação de Deus com a natureza, embora esta interpretação seja contestada por alguns estudiosos de Spinoza. Dessa forma, Deus, sendo tudo, é ao mesmo tempo nada, pois é indistinto de qualquer coisa em particular. Como articulou Hegel em sua Ciência da Lógica, "o ser e o nada são o mesmo". O puro ser, a pura abstração, é também o nada.
O Deus aranha de Nietzsche é um deus metafísico, um espírito puro que acabou se tornando "coisa em si". Esta última referência é a Kant, embora seja importante ressaltar que, para o filósofo de Königsberg, Deus não é "coisa em si", mas sim uma "ideia da razão". Para Nietzsche, os metafísicos, ao passar dos séculos, se apropriaram, tornaram-se "senhores" do conceito de Deus e trabalharam tanto nele, "teceram durante tanto tempo em seu redor", que o próprio Deus foi "hipnotizado pelos seus movimentos" e acabou se transformando em uma aranha da espécie Spinozae.
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