Em Psicanálise: clínica & pesquisa, Luciano Elia se propõe a demonstrar em que medida a pesquisa se impõe à prática em psicanálise, revelando como a pesquisa é uma dimensão essencial da práxis analítica. Além disso, o autor articula o conceito de sujeito na ciência e na psicanálise e discorre sobre diversos aspectos sócio-econômicos implicados em uma concepção teórica elitista da psicanálise.
A psicanálise é uma ciência?
Um importante aspecto a se considerar na questão é que a psicanálise deriva da ciência, mas não se reduz a ela. Apesar da aspiração de Freud a que a psicanálise fosse reconhecida como uma ciência, do ponto histórico em que estava não lhe era possível extrair todas as conseqüências desse seu passo. Lacan então interroga: que ciência poderia incluir a psicanálise?
A resposta é que nenhuma das ciências é capaz de responder à questão que a psicanálise lhes coloca, constituído esta, então, uma derivação e uma ultrapassagem da ciência. A psicanálise, segundo demonstrado por Lacan, é um saber inteiramente derivado, porém não integrante do campo científico, e tudo isso devido à introdução do sujeito pela psicanálise na cena discursiva, sujeito este que foi excluído da ciência.
O sujeito na ciência foi inventado por Descartes, mas é um sujeito sem qualidades, sejam sensoriais, perceptuais, anímicas, morais, enfim, numa palavra, empíricas. É um sujeito sem qualidade alguma.
Dizer, portanto, que a psicanálise deriva da ciência seria dizer que o sujeito com o qual se opera em psicanálise – o sujeito do inconsciente - é um sujeito sem qualidades. O sujeito da psicanálise só pode ser incluído como sujeito do inconsciente.
Ao considerar que há um modo peculiar de fazer pesquisa em psicanálise, entramos no terreno do método. E a questão crucial deste método é a inclusão do sujeito em toda a extensão, e em todos os níveis – saber teórico, prática clínica, atividade de pesquisa, etc. Toda e qualquer pesquisa em psicanálise é, assim, necessariamente uma pesquisa clínica.
A psicanálise e sua extensão social
O lócus específico do exercício clínico psicanálise tem sido o consultório particular. No entanto, a concepção deste consultório como lugar, na maioria das vezes, exclusivo de se fazer psicanálise, deve ser colocado em questão.
A concepção do setting analítico, decorrente dessa característica do consultório particular, teve como uma de suas conseqüências a elitização da psicanálise, sua restrição a determinadas camadas sociais que tem acesso à configuração clássica denominada consultório particular. Procede-se como se os princípios teóricos clínicos e éticos da psicanálise autorizassem avalizassem e até exigissem certas condições ditas “técnicas” para o exercício da prática psicanalítica, como uma configuração logística eivada de pré-requisitos socioeconômicos, políticos e ideológicos, pertinência às classes de renda mais elevada, etc.
Mas a utilização de algum rigor no exame da questão revela rapidamente o grau dessa deformação, afirma Elia. Pelo fato de a psicanálise introduzir no campo do saber a dimensão do homem inconsciente, uma conseqüência fundamental é a seguinte: o sujeito do inconsciente não é um sujeito empírico, dotado de atributos psicológicos, sociais, políticos, ideológicos ou afetivos. Enquanto tal, ele é sem atributos. E o próprio Freud, em diversos momentos, coloca o sujeito acima de suas configurações ou inserções sociais, o que demonstra que a elitização da psicanálise foi um desvirtuamento precoce.
É possível fazer psicanálise em qualquer estrato social, em qualquer ambiente institucional (não apenas no clássico setting analítico, que deve ser interpretado, de acordo com Lacan, como um lugar estrutural, e não físico), desde que haja analista, de um lado, e sujeito dividido, de outro. O elitismo é demonstrado, portanto, como impossível numa postura rigorosamente psicanalítica.
O fato de a psicanálise se manter ainda reduzida a determinada extensão social persiste porque os analistas aderem a uma configuração do dispositivo analítico decorrente de um processo de imaginarização das condições de análise, que se relacionam no mais alto grau a uma ideologização da prática psicanalítica a partir de sua inserção no sistema capitalista.
Psicanálise e universidade
A psicanálise é relativamente recente tanto na universidade quanto no mundo. No entanto, a partir de Lacan, viu-se que ela não poderia definir-se como especialidade médica, abrindo assim seu exercício a outros agentes. No Brasil isso ocorreu de tal forma que a maioria dos psicanalistas hoje são psicólogos. A psicanálise passa hoje, portanto, por uma desmedicalização juntamente com uma deselitização. E tais efeitos não deixam de se relacionar com a inserção da psicanálise na universidade.
O discurso analítico, segundo Lacan, pode habitar a universidade sem prejuízo ou deterioração para si ou para as práticas universitárias.
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