O bom nazista - reflexões com Hannah Arendt sobre a banalidade do mal e Eichmann em Jerusalém


Talvez não seja nenhum exagero afirmar que a maioria dos nazistas eram boas pessoas. Em sua intimidade, em sua vida familiar ou em sua relação com os vizinhos, talvez aquelas multidões que vemos nos registros das manifestações nazistas fossem compostas, em quase sua totalidade, por pessoas honestas, trabalhadoras, solidárias, bons pais, boas mães, bons vizinhos e bons filhos. A imagem que temos dos nazistas como monstros me parece uma simplificação grosseira do fenômeno.

O mecanismo psicológico que leva alguém a tratar nazistas como monstros é rudimentar, primitivo, arcaico, e um de seus usos pode ser observado, por exemplo, na construção das histórias infantis. É característico dos contos de fadas representarem seus personagens de maneira inequívoca, sem ambiguidades de caráter. Tendo como principal público as crianças, ainda psicologicamente incapazes de discernir nuances nas personalidades dos caracteres, a inteligibilidade desses contos exige que uma bruxa má, por exemplo, seja somente má, e que uma fada boa, por sua vez, seja o tempo todo boa. Uma bruxa que fosse boa em algum aspecto de sua vida social, mas malvada em outros, não seria compreendida pelos pequeninos.

Esta estereotipagem maniqueísta entre indivíduos bons e maus, normais e desequilibrados, que quase nunca ocorre na vida real, impregna também a maneira como o nazismo, um dos fenômenos mais complexos da história do século XX, é retratado, compreendido, divulgado e assimilado. O frequente recurso à psicologia para tentar explicar este movimento político como derivado de distúrbios psíquicos de alguns de seus líderes – Hitler e seus consortes - é uma resposta fácil, reconfortante e ao mesmo tempo errada a uma questão que não admite ser reduzida apenas aos seus aspectos psicológicos ou éticos.

A imagem de nazistas como monstros ou como indivíduos totalmente diferentes de todas as pessoas que conhecemos nos torna incapazes de identificar, detectar, reconhecer o perigo do fascismo que pode estar à espreita. Um bom pai, uma boa mãe ou um sujeito caridoso que regularmente dá esmola aos pobres jamais se reconhecerá - e nem será reconhecido pela maioria - como um fascista, mesmo que defenda todas as bandeiras do fascismo. A estereotipagem hollywoodiana e das revistas baratas de semicultura que povoam as bancas de jornais nada esclarecem sobre o assunto. (Imagino que análises da grafia de Hitler e de seus supostos traumas de infância vendam muito bem, pois revistas com estes temas praticamente não saem das bancas, sempre recebendo novas edições.) O que essas publicações fazem ao divulgar tais análises psicologizantes é um desserviço à história, pois o esvaziamento do nazismo de seu teor político cede espaço tanto para o irracionalismo quanto para uma reedição do fenômeno.

Do ponto de vista psicológico e individual, não se pode dizer que cada nazista era um monstro, alguém muito diferente de nós. Adolf Eichmann, um oficial nazista corresponsável pela deportação e morte de milhares de judeus, foi julgado em Jerusalém no ano de 1961. A filósofa alemã Hannah Arendt, que cobria seu julgamento como correspondente do jornal The New Yorker, se surpreendeu ao perceber que Eichmann não era nenhum "monstro" tal como ela esperava. Cerca de meia dúzia de psiquiatras o avaliaram e concluíram que ele era alguém absolutamente normal, com um perfil psicológico até “desejável”. Eichmann era um bom pai, um bom marido, um bom amigo, um bom filho e tinha ideias “altamente positivas”, como afirmou um ministro que lhe visitava com frequência na prisão. Um dos psiquiatras teria dito que Eichmann era mais normal do que ele próprio ficou depois de tê-lo analisado.

Hannah Arendt afirmou que, a despeito de todos os esforços da acusação, todos puderam perceber durante o julgamento que Eichmann não era um “monstro” (embora fosse difícil não suspeitar que fosse um palhaço, o que acabou sendo ignorado por causa da gravidade dos seus atos). Quanto mais se ouvia o que ele tinha a dizer, mais óbvio se tornava que sua inabilidade em falar estava estreitamente relacionada com sua inabilidade de pensar, isso é, de pensar a partir da perspectiva do outro.

O nazismo é divulgado na cultura de massa como uma ameaça distante tanto no tempo quanto no espaço, protagonizado por caracteres totalmente diferentes de nós. Chega a ser algo exótico. Assistir a certos documentários sobre o nazismo é quase como assistir a documentários sobre extraterrestres ou sobre o império romano. E esta desumanização dos nazistas, o fato de considerá-los "monstros" e não humanos, esconde, oculta, mascara o fascismo nosso de cada dia.

Em outubro de 2015, um conhecido dirigente do PT (Partido dos Trabalhadores) faleceu e estava sendo velado na cidade de Belo Horizonte. Manifestantes de direita foram até o local com cartazes ofensivos e despejaram grande quantidade de panfletos políticos contra o partido do defunto. A notícia de tal desrespeito à família chocou a todos os cidadãos de bom senso, a todos aqueles que entendem que a morte nivela, iguala a todos, independente das opções políticas. Um ato como este, que não respeita nem mesmo a morte de um ser humano que tinha ideias políticas divergentes, não é apenas uma demonstração de desumanização do falecido, mas revela um processo de desumanização em curso nos próprios manifestantes. Havia entre estes algumas senhoras que, podemos pensar, talvez até tenham a simpatia de seus vizinhos. Podem ser pessoas boas em vários aspectos de nossa multifacetada vida social, em vários dos papeis sociais que desempenhamos: mãe, avó, vizinha, etc. Elas próprias, contudo, jamais se identificariam com os históricos nazistas alemães, pois estes (elas também devem pensar assim) eram monstros, gente muito diferente de todo mundo que conhecem. Elas, ao contrário, certamente se enxergam como pessoas boas, cheias das melhores intenções em sua busca por um "futuro melhor" para o país.

A desumanização do nazismo é perigosa porque mascara que ele está entre nós. Ao transformar Hitler em monstro sobram poucos candidatos ao título, e parte desses já estaria fora de circulação - ou no hospício ou na cadeia. É preciso compreender que não há contradição em ser uma boa pessoa, ter alta cultura e ser um fascista ao mesmo tempo. Eichmann impressionou Hannah Arendt porque era uma pessoa extremamente normal, comum. Era um burocrata de escritório que obedecia a ordens, incapaz de pensar e de se colocar no lugar do outro. Ele jamais reconheceu que havia feito algo errado pois, em sua consciência, apenas “cumpria ordens” que eram legais em seu país. E nisso ele nos lembra os burocratas de empresas e outros lacaios dos capitalistas, os quais estão sempre apenas "cumprindo ordens", sem questionar. Quando questionados, apenas respondem que "é assim", como se não tivessem consciência e nem responsabilidade sobre o que fazem.

Glauber Ataide

* Para conhecer o bom nazista da foto que ilustra este post, veja esta matéria: https://www.theguardian.com/lifeandstyle/2010/aug/28/martin-davidson-grandfather-perfect-nazi

Ouça mais sobre este tema em nosso podcast

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  1. Brás Cubas, em suas memórias póstumas, já dizia elogiava o cunhado: apesar de ser um cruel traficante de escravos, Cotrim, era um excelente pai.

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