O "inferno" a que Jesus se referia

A imagem construída sobre o inferno a partir das descrições encontradas nos Evangelhos, as quais o caracterizam como um lugar de total escuridão, vermes, destruição e permanentemente em chamas, tem alimentado a imaginação e o medo dos homens no ocidente por vários séculos.

Mas essa concepção, mesmo em seus detalhes, não deixa de levantar problemas que exigem uma reinterpretação dos textos dos quais se pensa ter uma composição exata deste lugar.

Um desses pormenores, por exemplo, é a coexistência de uma total escuridão em um lugar no qual o fogo nunca se apaga. Como pode haver escuridão total em um lugar cujas chamas são inextinguíveis?

"E, se o seu olho o fizer tropeçar, arranque-o. É melhor entrar no Reino de Deus com um só olho do que, tendo os dois olhos, ser lançado no inferno, onde o seu verme não morre, e o fogo não se apaga. (Marcos 9:47-48)

Diante dessa e de muitas outras dificuldades, devemos nos perguntar se as referências bíblicas a esse lugar são realmente descrições literais ou se foram um recurso utilizado por Jesus para se fazer entender mais facilmente pelo homem comum, imediato receptor de seus discursos e sermões.

As palavras de Jesus não foram redigidas no momento em que ele as pronunciava. Elas foram registradas décadas após sua morte, devido à necessidade e à preocupação de se preservar sua mensagem, haja vista que as pessoas que tinham andado com ele morriam ao passar dos anos. Assim sendo, percebe-se quão importante era que sua mensagem fosse clara, para que pudesse permanecer na memória de seus seguidores por tantos anos antes de serem transcritas.

Ao analisarmos os trechos nos quais Jesus fala sobre o inferno percebemos que a principal palavra para descrever este lugar é "Gehenna". Esta palavra, na verdade, designa um lugar real chamado Vale de Hinon, situado ao sul de Jerusalém.

Este vale, já na época de Jesus, tinha uma longa história de infâmia, notório pelos sacrifícios de crianças oferecidos a Moloque durante os reinados de Asa e Manassés (2 Reis 16:3; 2 Crôn 28:3; 33:6; Jer 7:31-34; 19:6). Em algumas passagens do Antigo Testamento ele foi indicado como o local do julgamento futuro de Deus (Isa 30:33; 66:24; Jer 7:31-32).

Assim sendo, Jesus não falava aos seus interlocutores de um local imaginário, abstrato, mas sim de um local conhecido por seus ouvintes. Este vale era utilizado como um depósito sanitário, no qual eram lançadas sujeiras e corpos de animais mortos e de criminosos, que eram então queimados.

É por essa razão que Jesus descreve o inferno como um local onde "a chama nunca se apaga e o bicho não morre" (Mc 9:48): é que no Vale de Hinon o fogo era mantido aceso continuamente por questões de higiene. E pelo fato desse vale ser um depósito de corpos de animais e de criminosos mortos, além de outros despejos da cidade, ali havia muitos vermes, tornando-o símbolo da destruição eterna.

Uma leitura contextual desses trechos nos leva então a uma compreensão mais realista sobre as palavras de Cristo sobre o inferno, revelando ao mesmo tempo que não temos razões suficientes para interpretá-las como sendo descrições literais de um lugar de punição eterna. Suas palavras eram dirigidas ao homem comum que podia identificar o "Gehenna" como um local real, situado nas proximidades de Jerusalém, e que já possuía todo um significado de idolatria, punição, morte e destruição.

Uma vez perdida essa referência histórica e contextual, as descrições dos evangelhos acabaram se tornando, com o passar dos séculos, uma descrição literal, o que não parece ter sido a intenção de Jesus.

P.S.: Este texto, que escrevi por volta de 2008, havia se perdido. Por acaso o reencontrei em um blog recentemente, e com pequenas adaptações resolvi resgata-lo.

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