O idiota, de Dostoievski, e Policarpo Quaresma, de Lima Barreto

Este artigo, de autoria do jornalista Renato Pompeu, faz uma comparação entre dois protagonistas de dois dos meus livros favoritos: o príncipe Michhkin, do livro "O idiota", de Dostoievski, e Policarpo Quaresma, do livro "O triste fim de Policarpo Quaresma", de Lima Barreto.


“Policarpo” seria um “Idiota”?

Renato Pompeu

Quis o acaso que os palcos paulistanos reunissem os romances “O Idiota”, do russo Fiodor Dostoievski (Fiodor é a forma russa de Teodoro), escrito em 1867-69, e “Triste Fim de Policarpo Quaresma”, do carioca Lima Barreto, publicado quase meio século depois, em 1911. Mas o mais estranho é que os dois heróis, o “idiota” príncipe Michhkin e o “patriota” Quaresma têm muito em comum. A ponto que serviria para o romance russo a epígrafe do romance brasileiro: “O grande inconveniente da vida real e que a torna insuportável para o homem superior é que, se para ela são transportados os princípios do ideal, as qualidades se tornam defeitos, tanto que muito frequentemente aquele homem superior realiza e consegue bem menos do que aqueles movidos pelo egoísmo e pela rotina vulgar”, citação do livro “As origens do cristianismo”, do humanista francês Ernest Renan, do século 19.

O que é que isso tem a ver com Michkin? O príncipe, quando começa o romance, chega a São Petersburgo depois de ter passado um tempo internado num sanatório suíço, por sofrer de “idiotia” (na época, termo médico aplicado a pessoas com profundo retardamento mental) e de epilepsia. Na verdade, fosse ou não retardado (Dostoievski não deixa isso claro), Michkin era homem profundamente ético e generoso, o que o torna destoante da maioria dos demais personagens da obra, egoístas, interesseiros e que levam em conta muito mais as virtudes do dinheiro do que as virtudes morais.

Michkin, por exemplo, se dispõe a casar com uma mulher “decaída”, por ser ao mesmo tempo solteira e não mais virgem, amante de um homem poderoso que se propõe a pagar a um conhecido do príncipe para esse conhecido se casar com ela e esse homem poderoso poder continuar a ser amante da moça. Michkin quer se casar com ela, apesar de estar apaixonado pela filha mais nova de um general, para dar à “decaída” um sobrenome e uma posição de respeito na sociedade. E também para livrar seu conhecido do vexame de ser um marido pago para ser traído.

O príncipe, durante a trama, recebe uma herança, que aos poucos se descobre ser de valor bem menor do que o inicialmente esperado. Surge um enxame de credores, supostos ou reais, e de parentes e amigos, também supostos e reais, que literalmente passam a extorquir grandes quantias de Michkin. Generoso e desprendido, ou talvez “idiota”, o príncipe se esforça por atender a todos os pedidos.

Rejeitado tanto pela “decaída” com quem pretendia se casar, como pela jovem pela qual se tinha apaixonado, Michkin, igualmente abandonado por todos ao praticamente se esgotar seu dinheiro, não tem outro remédio senão novamente se internar no sanatório suíço. Ambas as mulheres se unem a homens de caráter duvidoso.

Vemos que Michkin se enquadra na definição de “homem superior” da epígrafe escolhida para “Policarpo”, pois “consegue bem menos do que aqueles movidos pelo egoísmo e pela rotina vulgar”. Pois “fora da rotina” e “destoante” era um dos sentidos da palavra “idiota” na Grécia antiga, reservada para pessoas, que, por terem opiniões muito próprias, “idiossincrasias”, não participavam da vida política dos cidadãos comuns.

Igualmente, Policarpo Quaresma poderia ser considerado “idiota”, e de fato foi considerado louco, por causa de seu extremo idealismo nacionalista. Servidor civil do Exército, onde exerce funções burocráticas, conhecido como “major” apesar de não ter a patente, Quaresma é um solteirão considerado, inicialmente, “esquisitão” por ler muito nas horas vagas (como se fosse um novo Dom Quixote). Ainda mais “esquisitão” passa a ser julgado pelos amigos quando se dispõe a aprender a tocar violão, considerado na época um instrumento ligado a malandros e vagabundos. A justificativa de Quaresma é que ele acha o violão um símbolo da nacionalidade brasileira.

No entanto, avançando em seu nacionalismo, possivelmente por considerar o violão, afinal, de origem européia e assim não ser um instrumento genuinamente brasileiro, o major Quaresma passa a estudar o tupi, “idioma” insuspeito de europeísmo, e as tradições indígenas em geral. Depois de propor ao Parlamento que tornasse obrigatório o tupi como língua oficial do País, Quaresma passa de “esquisitão” a “louco” na visão de seus conhecidos.

Logo essa visão passa a diagnóstico médico e funcional. É que Quaresma começa a redigir documentos de sua repartição em tupi, sendo por isso afastado de suas funções e internado num manicômio. Anos depois, recebe alta e, aposentado, gasta grande parte de sua pensão na compra de um sítio no interior, para viver do “solo pátrio” e difundir técnicas agrícolas avançadas.

O empreendimento fracassa com estardalhaço, e Quaresma, apesar de se isolar da política local (afinal, como Michkin, ele é também um “idiota” no sentido grego antigo da palavra), se vê perseguido pelas duas correntes políticas rivais. Pois cada partido julga seu isolamento um disfarce para Quaresma servir ao partido adversário. Na verdade, ele se mantinha afastado dos dois partidos por considerá-los, a partir de seu idealismo, por demais ligados a interesses mesquinhos.

Quaresma, sempre nacionalista, era também republicano de carteirinha. Quando ocorre, no início dos anos 1890, o movimento monarquista para a derrubada do presidente da República, marechal Floriano Peixoto, movimento conhecido como Revolta da Armada, o “major” deixa o sítio para combater no Rio de Janeiro a revolta, sendo engajado com a patente de fato de major num regimento.

Acontece que, lutando pela República, Quaresma descobre que o novo regime está longe de corresponder a seus ideais elevados, corroído que está por corruptos e bajuladores. Ele passa a criticar essas mazelas, o que o leva a ser considerado traidor e a ser condenado ao fuzilamento. Realmente, triste fim de Policarpo Quaresma. Como também foi triste o fim de Michkin, outro “idiota”.

Assim, ficam claras as semelhanças entre os dois heróis dos romances agora encenados em São Paulo.


P.S.: Na foto deste post, à esquerda, temos o Príncipe Michkin conforme interpretado na mini-série russa em 10 episódios "O idiota", baseada no livro homônimo de Dostoievski. Vale a pena assistir, foi muito bem feita bem e é muito próxima ao livro.


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