Psicologia de massas do fascismo, de Wilhelm Reich - uma resenha

A importância do estudo do fascismo não é meramente histórica. A definição de fascismo dada pelo psicanalista marxista Wilhelm Reich, como "a expressão da estrutura irracional do caráter do homem médio, cujas necessidades biológicas primárias e cujos impulsos têm sido reprimidos há milênios", deixa claro que o fascismo é um fenômeno atual, quer apresente-se de forma aberta ou apenas latente.
Ou seja, aquele fascismo de ontem, destruído na II Guerra Mundial pelos comunistas da URSS, é o mesmo fascismo de hoje, e tem todas as possibilidades de se reorganizar como outrora sob Hitler. Daí a importância de compreendê-lo, de dominá-lo teoricamente, para então melhor combatê-lo.
É isso o que Reich afirma: "O fascismo só pode ser vencido se for enfrentado de modo objetivo e prático, com um conhecimento bem fundamentado dos problemas da vida."
A abordagem de Reich sobre o fascismo é riquíssima, se configurando como uma genial síntese entre Marx e Freud, entre marxismo e psicanálise. Seu livro "Psicologia de massas do fascismo" foi escrito e publicado no início da década de 1930, enquanto o fascismo era ainda incipiente, e antes também de causar todas aquelas atrocidades que chocariam o mundo anos depois. Isso mostraria, mais tarde, a justeza da análise de Reich.
Nesta obra ele responde a questões fundamentais sobre o fascismo e o seu surgimento, coisas que em sua época não era possível responder com a análise apenas econômica do chamado "marxismo vulgar".
Algumas dessas questões eram: como foi possível o surgimento do fascismo, sendo ele não um pequeno movimento associado a Hitler ou a Mussolini, mas sim um movimento de amplas massas? Como puderam as massas empobrecidas se alinhar com um discurso completamente contrários aos seus próprios interesses de classe? Por que Hitler foi mais eficiente do que o Partido Comunista em alcançar uma vasta audiência antes apolítica?
Essas perguntas eram de importância fundamental, principalmente dentro do Partido Comunista da Alemanha, do qual Reich era o editor da revista de psicologia.
A clivagem
Um ponto fundamental da análise de Reich para responder a essas questões é o que ele chama de "clivagem" da situação econômica com a situação ideológica do trabalhador.
Isso é, seria de se esperar que o trabalhador empobrecido, diante do trabalho de agitação e propaganda do partido comunista, desenvolvesse uma clara consciência de sua situação social, a qual se tranformaria numa determinação revolucionária de se livrar de sua própria miséria social.
Mas o contrário aconteceu na Alemanha de Hitler, e ainda hoje acontece, com frequência. Mas por quê? O que causa essa chamada clivagem entre a situação econômica e a ideológica do trabalhador?
Reich explica essa clivagem apontando para a estrutura de caráter do homem médio, que tem como um dos principais fatores a sexualidade reprimida.
Esta estrutura de caráter, gestada há milênios sob uma sociedade patriarcal, é utilizada de forma eficiente pela ideologia imperialista para servir aos seus propósitos.
A função social da repressão sexual
O marxista Reich compreende perfeitamente que são as condições materiais que determinam a superestrutura ideológica de toda sociedade. Mas é baseando-se em Sigmund Freud que ele vai dizercomo isso acontece na mente do indivíduo, e também como a ideologia afeta a estrutura econômica. Munido com as revolucionárias descobertas de Freud sobre o inconsciente e a sexualidade infantil, Reich afirma:
"A inibição moral da sexualidade natural na infância, cuja última etapa é o grave dano da sexualidade genital, torna a criança medrosa, tímida, submissa, obediente, "boa", e "dócil", no sentido autoritário das palavras. Ela tem um efeito de paralisação sobre as forças de rebelião do homem, porque qualquer impulso vital é associado ao medo; e como sexo é um assunto proibido, há uma paralisação geral do pensamento e do espírito crítico. Em resumo, o objetivo da moralidade é a criação do indivíduo submisso que se adapta à ordem autoritária, apesar do sofrimento e da humilhação. Assim, a família é o Estado autoriário em miniatura, ao qual a criança deve aprender a se adaptar, como uma preparação para o ajustamento geral que será exigido dela mais tarde. A estrutura autoritária do homem é basicamente produzida - é necessário ter isso presente - através da fixação das inibições e dos medos sexuais na substância viva dos impulsos sexuais." (p. 28, grifo nosso)
[...]
"O resultado é o conservadorismo, o medo de liberdade; em resumo, a mentalidade reacionária." (p. 29, grifo nosso)
O efeito, então, da ideologia sobre a base econômica e que vai gerar essa clivagem é resumida dessa forma:
"...a inibição sexual altera de tal modo a estrutura do homem economicamente oprimido, que ele passa a agir, sentir e pensar contra os seus próprios interesses materiais." (p. 30)
A estrutura familiar e o fascismo
Wilhelm Reich nos fornece inúmeras citações de panfletos nazistas da época para mostrar a importância dada pelo Partido Nacional-Socialista à estrutura familiar patriarcal, conservadora. Obviamente eles o faziam mais por "instinto" do que por um conhecimento psicológico profundo.
A partir da análise da família, Reich compreende a razão do fascismo ser um fenômeno típico da classe média-baixa: é devido à estrutura familiar autoritária deste estrato social.
Na família do operário, por exemplo, como a mulher precisa trabalhar e ele não sustenta a casa sozinho, o caráter patriarcal é menos influente do que na família de classe média.
A posição dos nazistas em temas como o aborto, por exemplo, deixa claro o que estava em jogo: a repressão sexual. Eles se manifestavam veemente contra o aborto e contra qualquer tipo de regulação da vida sexual.
Os nazistas pregavam o sexo apenas após o casamento, e eram a favor de um estrito controle sobre a sexualidade, combatendo o "bolchevismo cultural".
Reich identifica nisso que o homem médio não conhece a regulação da vida sexual - acha que tem que escolher ou a moral sexual repressiva ou a anarquia sexual, a libertinagem. Uma forma de maniqueísmo sexual.
Religião e misticismo
Os panfletos nazistas reproduzidos por Reich também mostram o quanto eles se apoiavam na religião e no misticismo.
Mas a psicanálise já havia desvendado o efeito psicológico ocorrido nas pessoas sob influência de cultos religiosos. Já havia mostrado a correlação entre as idéias de Deus como pai; de mãe de Deus como mãe e da Trindade como o triângulo familiar (pai, mãe e filho).
Isso é, "os conteúdos psíquicos da religião têm a sua origem nas relações familiares desde a primeira infância."
Reich, se baseando nas descobertas da psicanálise sobre a experiência psíquica da religião, afirma:
"...o homem religioso encontra-se num estado de total desamparo. Em consequência da total repressão da sua energia sexual, perdeu a capacidade para a felicidade e para a agressividade necessária ao combate das dificuldades da vida. Quanto mais desamparado ele se torna, mais é forçado a acreditar em forças sobrenaturais que o apóiam e o protegem. Assim se compreende que, em algumas situações, ele seja capaz de desenvolver um incrível poder de convicção; de fato, uma indiferença passiva com relação à morte. Essa força advém-lhe do amor às suas próprias convicções religiosas, que são sustentadas por excitações físicas altamente prazerosas. Mas ele acredita que essa força provém de 'Deus'. O seu anseio por Deus é, na realidade, o anseio originado pela sua excitação sexual anterior ao prazer e que exige ser satisfeito. A liberação não é, nem pode ser, mais do que a libertação das tensões físicas insuportáveis, que podem ser agradáveis enquanto puderem ser associadas a uma união imaginária com Deus, isto é, à satisfação e ao alívio. A tendência dos religiosos fanáticos para se flagelarem, para atos masoquistas, etc, só vem confirmar o que dissemos. A experiência clínica em economia sexual mostra que o desejo de ser espancado ou a autopunição corresponde ao desejo instintivo de alívio sem incorrer em culpa. Não há tensão física que não evoque fantasias de estar sendo espancado ou torturado, se o indivíduo em questão se sente incapaz de produzir por si próprio o alívio. É essa a origem da ideologia do sofrimento passivo, presente em todas as religiões." (p. 139-140)
[...]
"Em nenhuma classe social florescem as histerias e as perversões, tanto como acontece nos círculos ascéticos da igreja."
O misticismo e a religião reforçam a inibição sexual, a moralidade de submissão e a estrutura familiar patriarcal autoritária. Daí o enorme interesse do fascismo e de toda sorte de reacionarismo político em se utilizar dessas instituições para desarmar o proletariado e manter intacto, sem perturbações, o seu sistema de dominação.
Economia sexual no combate ao fascismo
Reich, como todo marxista, compreende que mais importante do que interpretar o mundo, o que importa é transformá-lo. Por isso sua obra não poderia deixar de apontar alguns caminhos para combater as bases do fascismo.
Vamos nos limitar a citar apenas uma das políticas de economia sexual que ele apresenta, que é resumida da seguinte forma:
"Se conseguimos eliminar o medo infantil da masturbação - o que tem como consequência o aumento da necessidade de satisfação sexual genital -, então o conhecimento intelectual e a satisfação sexual prevalecerão. À medida que desaparece o medo da sexualidade, ou o medo da antiga proibição sexual paterna, diminui também a crença mística." (p. 171)
"A consciência sexual e os sentimentos místicos são incompatíveis."
[...]
"Não nos interessa discutir a existência ou inexistência de Deus: limitamo-nos a suprimir as repressões sexuais e a romper os laços infantis em relação aos pais." (p. 172)
Para comprovar a justeza da linha de seu trabalho, Reich cita os resultados que ele vinha obtendo em seu trabalho de economia sexual com os operários e suas famílias.
Conclusão
Esta obra de Reich, em nosso entendimento, seria melhor se não tivesse sofrido as revisões que sofreu nas edições seguintes à original. À medida que se passam os capítulos, sua obra começa a se mostrar uma colcha de retalhos. Isso foi causado pelo afastamento de Reich do Partido Comunista da Alemanha e seu abandono do marxismo, que ocorreu entre uma edição e outra, num espaço de mais de 10 anos.
As críticas que Reich ensaia sobre a URSS, por exemplo, são em sua maioria descabidas, tendo ele incorrido no grave erro do reducionismo psicológico. E justamente ele, que tanto criticava os "marxistas vulgares" pelo reducionismo econômico.
Nos primeiros capítulos Reich é comunista; no último já abandonou completamente o comunismo e o marxismo, defendendo a teoria da "democracia do trabalho", inventada por ele mesmo. Isso comprometeu a coesão e a coerência de sua obra.
No entanto, permanece intocável o valor de sua análise do fascismo presente nos primeiros capítulos, sendo esta obra altamente recomendável a todos aqueles que pretendem empreender uma análise profunda do fascismo.
Fonte: O Marxista-Leninista (com adaptações)

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  1. Muito interessante o seu texto sobre o fascismo e a estrutura ideologica que o sustenta, mas o que ainda é mais preocupante é que os regimes totalitarios de esquerda tem os mesmos germes reaccionários e são socialmente conservadores, basta lembrarmos o retrocesso social que ocorreu na união soviética nos fins dos anos vinte do seculo passado, ou a condenação da homossexualidade por regimes como por exemplo o de Castro, ou ainda recentemente a condenação do aborto na nicarágua, enfim, infelizmente não é so a direita que tem o monopólio da asneira.

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  2. Fernanda, a categoria de "regime totalitário de esquerda" que você toma de empréstimo de Hanna Arendt é extremamente problemática.

    Ela está sendo agora abandonada à medida que nos distanciamos do fim da Guerra Fria, da qual Arendt era uma ideóloga comprovadamente paga pela CIA.

    A intenção rasteira desse tipo de argumento é associar completamente o socialismo (da URSS) ao nazismo, e não simplesmente apontar alguns erros cometidos pela direção da URSS.

    Sobre o homossexualismo, o próprio Fidel Castro já se pronunciou publicamente sobre essa questão e fez uma autocrítica.

    A Nicarágua não é socialista, então deixo que os capitalistas respondam por isso.

    A liberdade que as mulheres conquistaram na URSS foi algo completamente inusitado em seu contexto histórico. Pode parecer pouco hoje, mas nenhum país burguês liberal fez tanto pelas mulheres naquela época como fez a URSS.

    É por isso que os panfletos nazistas atacavam tanto a sexualidade "judeu-bolchevique" e a rotulavam de "imoral", chegando a acusar os russos de querer instaurar a "comunidade das mulheres".

    Não fosse o estado de exceção permanente em que vivia a URSS, com ameaças externas, o cerco capitalista e os complôs internos, certamente ela teria avançado mais nessas questões.

    Mas o que ela fez e deixou como exemplo não foi pouco, e isso forçou o Ocidente a seguir pelo mesmo caminho.

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