Esperando por mim - o mal do século e a imortalidade

Reproduzimos abaixo trechos do livro Depois do fim - Vida, amor e morte nas canções da Legião Urbana que analisam a canção "Esperando por mim", do último e melancólico álbum "A tempestade", da Legião Urbana.



Esperando por mim

Acho que você não percebeu
Que o meu sorriso era sincero
Sou tão cínico às vezes
O tempo todo
Estou tentando me defender

Digam o que disserem
O mal do século é a solidão
Cada um de nós imerso em sua própria arrogância
Esperando por um pouco de afeição

Hoje não estava nada bem
Mas a tempestade me distrai
Gosto dos pingos de chuva
Dos relâmpagos e dos trovões

Hoje à tarde foi um dia bom
Saí pra caminhar com meu pai
Conversamos sobre coisas da vida
E tivemos um momento de paz

É de noite que tudo faz sentido
No silêncio eu não ouço meus gritos

E o que disserem
Meu pai sempre esteve esperando por mim
E o que disserem
Minha mãe sempre esteve esperando por mim
E o que disserem
Meus verdadeiros amigos sempre esperaram por mim
E o que disserem
Agora meu filho espera por mim
Estamos vivendo
E o que disserem os nossos dias serão para sempre.


Em primeiro lugar, chama a atenção a referência direta que Renato Russo faz ao mal do século, o que reforça sua posição na tradição de letrista de orientação romântica (e em alguns momentos deste disco, da 2ª geração do romantismo).

O mal do século, no romantismo da 2ª geração, se identifica por temas como a depressão, a morte, o ódio, o grotesco, o absurdo, a noite, o amor não correspondido, etc. Um dos principais expoentes do gênero no Brasil foi Álvares de Azevedo .

Renato apresenta, no entanto, uma própria definição do que seja o mal do século: "Digam o que disserem / O mal do século é a solidão".

"'Esperando por mim' (8º álbum) prega a eternidade através das gerações que virão. É uma possibilidade de estar vivo para sempre no outro: 'Meu pai sempre esteve esperando por mim / E o que disserem / Minha mãe sempre esteve esperando por mim / E o que disserem / Meus verdadeiros amigos sempre esperaram por mim / E o que disserem / Agora meu filho espera por mim / Estamos vivendo e o que disserem / Os nossos dias serão para sempre'.

"Pai representa a segurança e a ordem; mãe, o aconchego e a paz; amigos, a força; filho, a certeza da perpetuação. Os dias serão para sempre, porque haverá a lembrança deles nas pessoas que ficam. É o mesmo olhar de carinho, de compreensão de 'Pais e filhos' (4º álbum). A chave da harmonia: aceitação das diferenças entre as gerações. Pais igual ao passado, amigos igual ao presente, filho igual ao futuro." (p. 122, grifo nosso)

Esta leitura realizada pelas autoras me remeteu diretamente a um trecho da obra "O banquete", de Platão. Em um diálogo com Diotima, Sócrates afirma que o amor é o desejo de imortalidade. Através do amor as criaturas se reproduzem, e essa é a forma do mortal imitar o imortal. O mortal pode prolongar sua existência apenas através da procriação.

As autoras também mostram como Renato Russo se enquadra na tradição romântica:

"A letra caracteriza bem o eu romântico ao desenvolver um discurso irônico: 'Acho que você não percebeu / Meu sorriso era sincero / Sou tão cínico às vezes / O tempo todo / Estou tentando me defender', o que está de acordo com os sentimentos românticos de marginalidade, de desilusão e de tédio: 'O mal do século é a solidão / Cada um de nós imerso em sua própria arrogância / Esperando por um pouco de afeição'. Versos sínteses da visão romântica, do eu-lírico como possuidor de um mal incurável." (p. 122)

E também neste trecho:

"A noite também é o grande espaço do eu romântico: 'É de noite que tudo faz sentido / No silêncio eu não ouço meus gritos / E o que disserem'. Ele busca no silêncio a paz que não está no seu interior. É uma tentativa do externo dar conta do interno." (p. 30)

O eu-lírico pode se esquecer por um momento de todas as suas perturbações através do trabalho. Os versos "Hoje não estava nada bem / Mas a tempestade me distrai" parece fazer referência ao título do álbum em que o autor estava trabalhando, "A tempestade".

Já nos seguintes versos podemos ver atuando um mecanismo de defesa do ego denominado pela Psicanálise de projeção: "O mal do século é a solidão / Cada um de nós imerso em sua própria arrogância / Esperando por um pouco de afeição". Isso é, o eu-lírico universaliza a sua própria experiência interna. Ele se considera, conscientemente ou não, um indivíduo que em sua solitária arrogância está na verdade esperando por afeição, e a partir disso aplica essa sua própria característica a todos os seus interlocutores e se defronta com isso como se estivesse vindo de fora..

(CASTILHO, Angélica, SCHLUDE, Erica. Depois do fim. Vida, amor e morte nas canções da Legião Urbana. Rio de Janeiro: Hama, 2002.)

Comentários

  1. Ola Glauber, nao se parece essa opiniao do Russo com o Eterno-retorno de Nietzsche? Acho que sim, talvez ele tenha bebido este!

    Interessante, de facto eu e a Kim estamos esperando pelo nosso filho que ate ja estamos a pensar no seu nome mesmo antes de o concebermos.
    Abracos

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  2. Renato mafredine junior forca sempre

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  3. Renato russo o júnior o único poeta da música do Brasil

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  4. Renato Russo, eterno em nossos corações!

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  5. Eterno Renato. Não haverá outro igual.

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