Deuses que cagam: "A negação da morte", de Ernest Becker

Talvez a principal angústia do homem seja perceber-se capaz de, ao mesmo tempo, pensar em coisas como o infinito mas ser finito. O ser humano consegue conceber a imortalidade mesmo dentro de um corpo mortal. Pensa em coisas espirituais mas sabe que é um animal.

E essa angústia é tanta que, para fugir a esse paradoxo, tem criado escolas e mais escolas de pensamento para lhe colocar acima de tudo o mais que há no mundo.

Mas como disse certa vez Montaigne, "no mais alto trono do mundo o homem senta-se sobre o seu traseiro". O ânus e seu produto - o excremento - estão sempre ali para lembrar a qualquer homem o que ele é: homem. Animal.

A psicanálise cedo descobriu o que se chama "analidade". A chave básica para o segredo da analidade, segundo Ernest Becker em seu livro "A negação da morte", é que ela reflete o dualismo da condição do homem - o seu eu e o seu corpo.

A analidade, ou os traços de caráter anal, são "formas de protesto universal contra o acidente e a morte". A analidade explica por que os homens anseiam por se libertarem de contradições e ambiguidades. Becker afirma que "o que perturba na analidade é que ela revela que toda cultura, todos os estilos de vida criativos do homem são, em alguma parte básica, um protesto que se criou contra a realidade da natureza, uma negação da verdade da condição humana, e uma tentativa de esquecer a criatura patética que o homem é."

O cúmulo do horror é o fato de o sublime, o belo e o divino serem inseparáveis das funções animais básicas. É por isso que o jovem, neste trecho do poema de Swift, expressa a contradição que o dilacera:

Não admira que eu tenha enlouquecido;
Oh! A Célia, a Célia, a Célia caga!

Essa é uma imagem perfeita para esta contradição humana. A mulher amada, idealizada, atormenta a consciência do amante quando este é lembrado que sua donzela caga.

Esta análise de Becker me remete a um episódio de minha adolescência. Quando tinha uns 14 anos de idade, um colega de escola me contou, certa vez, qual era a sua técnica para superar uma decepção amorosa ou um amor não correspondido. Ele me contou que apenas imaginava a menina de que gostava cagando.

Refletindo nisso mais de uma década depois, o que ele fazia não era nada mais que explorar um dos pólos dessa contradição humana para alcançar seu objetivo - o desfazer de uma idealização, uma iconoclastia.

O poeta Swift expressa de forma atormentada este dilema da dualidade da natureza humana, resumida assim por Becker: "excretar é a maldição que ameaça com a loucura, porque mostra ao homem a sua abjeta finitude, sua materialidade, a provável irrealidade de suas esperanças e de seus sonhos. Mas ainda mais imediatamente, representa o absoluto aturdimento diante do cabal absurdo da criação: moldar o sublime milagre do rosto humano, o mysterium tremendum da radiosa beleza feminina, as verdadeiras deusas que são as mulheres bonitas; tirar isso do nada, do vácuo, e fazê-lo brilhar à plena luz do dia; tomar um milagre desses e dentro dele colocar outros milagres mais, na profundidade misteriosa dos olhos que investigam - os olhos que provocaram uma comoção até mesmo no impassível Darwin: fazer tudo isso e combiná-lo com um ânus que caga! É demais. A natureza zomba de nós, e por isso os poetas vivem atormentados."

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  1. Uma angustiante verdade: somos animais mortais.
    Uma relativa angustia: nos imortalizar mesmo com a natureza zombando de nós.
    Conclusão: Sou animal imortal atormentado!!!

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  2. texto ótimo... as vezes nos perdemos na idéia de que somos infinitos...

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  3. Anônimo10:01 PM

    Em ti, tal qual nos temores da morte, relativizam-se os mais rigidos principios e caprichos humanos, pois encerras num só patamar Reis e plebeus, Sabios e indoutos, mestres e neófitos.
    Oh! CAGANEIRA, quem aplacará tua fúria?

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