Suas autoras, Angélica Castilho e Erica Schlude, possuem o título de Doutoras e Mestres em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.
A letra copiada abaixo mantem todas as pontuações originais de Renato Russo.
Acrilic on canvas
- É saudade então.
E mais uma vez
De você fiz o desenho mais perfeito que se fez:
Os traços copiei do que não aconteceu.
As cores que escolhi, entre as tintas que inventei,
Misturei com a promessa que nós dois nunca fizemos
De um dia sermos três.
Trabalhei você em luz e sombra.
Era sempre:
- Não foi por mal. Eu juro que nunca
Quis deixar você tão triste.
Sempre as mesmas desculpas
E desculpas nem sempre são sinceras -
Quase nunca são.
Preparei a minha tela
Com pedaços de lençóis
Que não chegamos a sujar.
A armação fiz com madeira
Da janela do seu quarto.
Do portão da sua casa
Fiz paleta e cavalete
E com as lágrimas que não brincaram com você
Destilei óleo de linhaça
E da sua cama arranquei pedaços
Que talhei em estiletes
De tamanhos diferentes
E fiz então
Pincéis com seus cabelos.
Fiz carvão do batom que roubei de você
E com ele marquei dois pontos de fuga
E rabisquei meu horizonte.
Era sempre:
- Não foi por mal. Eu juro que não foi por mal.
Eu não queria machucar você: prometo que isso nunca vai
Acontecer mais uma vez.
E era sempre, sempre o mesmo novamente -
A mesma traição.
Às vezes é difícil esquecer:
- Sinto muito, ela não mora mais aqui.
Mas então por que eu finjo que acredito no que invento?
Nada disso aconteceu assim - não foi desse jeito.
Ninguém sofreu: é só você que provoca essa saudade vazia
Tentando pintar essas flores com o nome
De "amor-perfeito" e "não-te-esqueças-de-mim".
- É saudade então.
E mais uma vez
De você fiz o desenho mais perfeito que se fez:
Os traços copiei do que não aconteceu.
As cores que escolhi, entre as tintas que inventei,
Misturei com a promessa que nós dois nunca fizemos
De um dia sermos três.
Trabalhei você em luz e sombra.
Era sempre:
- Não foi por mal. Eu juro que nunca
Quis deixar você tão triste.
Sempre as mesmas desculpas
E desculpas nem sempre são sinceras -
Quase nunca são.
Preparei a minha tela
Com pedaços de lençóis
Que não chegamos a sujar.
A armação fiz com madeira
Da janela do seu quarto.
Do portão da sua casa
Fiz paleta e cavalete
E com as lágrimas que não brincaram com você
Destilei óleo de linhaça
E da sua cama arranquei pedaços
Que talhei em estiletes
De tamanhos diferentes
E fiz então
Pincéis com seus cabelos.
Fiz carvão do batom que roubei de você
E com ele marquei dois pontos de fuga
E rabisquei meu horizonte.
Era sempre:
- Não foi por mal. Eu juro que não foi por mal.
Eu não queria machucar você: prometo que isso nunca vai
Acontecer mais uma vez.
E era sempre, sempre o mesmo novamente -
A mesma traição.
Às vezes é difícil esquecer:
- Sinto muito, ela não mora mais aqui.
Mas então por que eu finjo que acredito no que invento?
Nada disso aconteceu assim - não foi desse jeito.
Ninguém sofreu: é só você que provoca essa saudade vazia
Tentando pintar essas flores com o nome
De "amor-perfeito" e "não-te-esqueças-de-mim".
O título "Acrilic on canvas" (2º álbum) remete a uma técnica de pintura 49: acrílico sobre tela. O vocabulário está ligado às artes plásticas, por isso, palavras como "traços", "sombra" são alternadas com reflexões do eu-lírico sobre o objeto amado. Em seguida, mais palavras relacionadas à pintura, como "carvão", "pontos de fuga" 50, "tela", "paleta", "cavalete" são novamente interrompidas pelos pensamentos do eu-lírico. A proposta da letra é bastante criativa. Traz a pintura para o mundo das palavras. São duas manifestações artísticas distintas que aqui se unem, formando uma declaração de amor das mais originais. O ouvinte/leitor é capaz de criar a imagem das situações vividas e idealizadas através das palavras: "De você fiz o desenho mais perfeito que se fez: / Os traços copiei do que não aconteceu. / As cores que escolhi, entre as tintas que inventei, ". É a descrição do processo de idealização do objeto amado.
A música começa com um verso isolado que reflete a solidão: "- É saudade então." A letra trata a temática de despedida (4ª etapa), consequentemente, aborda a decepção, revelando uma obsessão do eu em relação a planos: "Misturei com a promessa que nós dois nunca fizemos / De um dia sermos três." Ele está sempre projetando para o futuro, quer construir um relacionamento ideal e o filho seria a síntese e o produto do amor.
A antítese do verso "Trabalhei você em luz e sombra." mostra que o objeto de desejo é razão e sentimento, certeza e dúvida, salvação e perdição, conhecimento e desconhecimento. É a figura do eu dividido entre o que é aceito e o que é proibido até mesmo dentro dele, pois a letra toda evidencia uma luta entre o sentimento e a incompatibilidade deste com o relacionamento.
A terceira estrofe é uma quebra da idealização do outro, pois apresenta o comportamento do objeto amado e a desilusão: "Era sempre: / - Não foi por mal. Eu juro que nunca / Quis deixar você tão triste. / Sempre as mesmas desculpas / E desculpas nem sempre são sinceras - / Quase nunca são." É o discurso das dúvidas, porque se quer o outro, apesar de tudo, e se quer recuperar um estado de graça perdido.
Todo o universo do eu-lírico é construído através do outro, ele torna pessoais os objetos. A saudade faz com que o quadro precise de retoques, à medida que novas recordações vão dando mais vida ao desenho iniciado: "Preparei a minha tela / Com pedaços de lençóis / Que não chegamos a sujar. / A armação fiz com madeira / Da janela do seu quarto. / Do portão da sua casa / Fiz paleta e cavalete / E com as lágrimas que não brincaram com você / Destilei óleo de linhaça / E da sua cama arranquei pedaços / Que talhei em estiletes / De tamanhos diferentes / E fiz então / Pincéis com seus cabelos. / Fiz carvão do batom que roubei de você / e com ele marquei dois pontos de fuga / E rabisquei meu horizonte." A letra é realmente a pintura de um quadro que tem a função de representar o outro, lembrando até a pintura clássica e renascentista, pois estas mantêm um compromisso com a fidelidade da representação do objeto pintado, mas, é claro, sempre de acordo com a visão do pintor desse objeto.
Mas, na estrofe, "Era sempre: / - Não foi por mal. Eu juro que não foi por mal / Eu não queria machucar você: prometo que isso nunca vai / Acontecer mais uma vez. / E era sempre, sempre o mesmo novamente - / A mesma traição. // Às vezes é difícil esquecer: / - Sinto muito, ela não mora mais aqui.", percebe-se que há novamente uma quebra da idealização do objeto amado. O outro, que ele imaginava, torna-se, na verdade, a pintura: "Mas então por que eu finjo que acredito no que invento? / Nada disso aconteceu assim - não foi desse jeito. / Ninguém sofreu: é só você que provoca essa saudade vazia / Tentando pintar essas flores com o nome / De 'amor-perfeito' e 'não-te-esqueças-de-mim'." A conclusão do fracasso amoroso resulta não mais no retrato do objeto amado, mas somente em flores, símbolo do relacionamento. A pintura em si já é simbólica, porque ela é uma representação, seja de uma imagem real, seja de uma imagem que busque expor idéias, expectativas, delírios. Na letra, o objeto amado é representado pela flor, que é símbolo de efemeridade, de harmonia, de juventude, logo, é a representação desse amor que não durou, sintetizando a história vivida em "amor-perfeito" (antes) e em "não-te-esqueças-de-mim" (depois). Mesmo havendo a decepção, o eu não consegue atribuir à imagem do outro aspectos negativos.
Vale lembrar que, na letra, não há a voz do outro, apenas o eu-lírico fala desse amor. O outro é representado, não tem voz, apesar dos diálogos representados por travessão. E o fato de apenas um dos amantes fazer o relato torna o discurso interessante, pois não se trata da busca pela verdade, mas sim da análise das argumentações utilizadas por quem sofre uma desilusão amorosa.
Notas
49 A poesia e a pintura transitam pela natureza do poético. Entendemos poético aqui como tudo aquilo que trabalha com a sensibilidade. Diferente de um texto jornalístico, por exemplo, o poema deve situar-se no entredito. Ele nunca diz tudo e permite várias leituras. Outro ponto de contato entre poesia e pintura é que ambas lidam com o espaço.
50 Ponto de fuga é um elemento do desenho de perspectiva, uma forma de marcar e calcular corretamente perspectivas e distância em desenhos de paisagens, ou mesmo para desenhos de sólidos geométricos, objetos e figuras humanas. Imagine uma entrada em campo aberto. Se você olhar para a estrada até onde a vista alcança, verá que os lados parecem se encontrar no horizonte. Em um desenho, o ponto onde os lados da estrada se encontram na linha do horizonte corresponde ao ponto de fuga relativo a essa estrada. O mesmo serviria, por exemplo, para postes que acompanhassem essa estrada e que diminuiriam de tamanho até chegarem ao ponto de fuga, na linha do horizonte.
(CASTILHO, Angélica, SCHLUDE, Erica. Depois do fim. Vida, amor e morte nas canções da Legião Urbana. Rio de Janeiro: Hama, 2002.)
(p. 159-162)
Adorei essa interpretação.
ResponderExcluirExcelente música e otima análise.Vivo c as tintas aq e nunca vi uma letra igual.
ResponderExcluirSuas análises são perfeitas mas é tudo muito longo ...
ResponderExcluirAnos ouvindo esta música, decifrando e viajando em ideias sobre a representação para tal entendimento, perfeito, além do meu pensar igualar-se com algumas frases expostas, a amplitude do entendimento explícito me fez ir mais alem. Parabéns!
ResponderExcluirDemais! Está perfeito! De fato Renato Russo era um grandioso poeta e músico também. A análise está ótima, parabéns para as autoras.
ResponderExcluirAcho que mais músicas da Legião merecem análises completas como esta.
#urbana legio omnia vincit
Excelente análise. Parabéns.
ResponderExcluirÓtima análise eu viajei aqui
ResponderExcluirEu entendo essa musica como uma ideologia, um sonho, uma ilusao do que poderia ter acontecido e o sofrimento do que realmente aconteceu.Uma pintura que não existiu. Um nada baseado em um nada do que aconteceu. Ou seja: a pintura nao existe. Simplesmente imagens e interpretacões coerentes de quem viveu um amor impossivel e talvez não correspondido nas expectativas.
ResponderExcluirExatamente isso. Essa música fala de um amor platonico. Toda a coisa se passa na cabeça do Renato. Por isso "saudade vazia" e "nada disso aconteceu assim" a analise literária da angelica esta completamente equivocada ao imaginar que o texto trata de despedida. Até a despedida é imaginária. Quando ele cria coragem pra trazer a relação pro mundo real ouve um " sinto muito ela não mora mais aqui" e aí vem o choque de realidade que se segue. Ressaltado pela quebra de bateria.
ExcluirNa realidade é uma letra forte. A irmã dele era quem fazia pintura... a ideia partiu daí... cada um tem a interpretação que quer e eu não gostei dessa de vcs... perdão... minha ineterpretação é outra... é uma viagem como se ela tivesse uma mulher que perdeu... um relacionamento... ´so isso
ResponderExcluirLilo, a interpretacao colocada pelas autoras do livro diz justamente isso que vc falou, o tempo todo. A letra fala de um relacionamento.
ResponderExcluirAmei! sempre quis entender melhor esta música. E o Renato sofreu várias desilusões amorosas. Mas a pior foi o fato dele ser apaixonado pela prima que nunca quis nada com ele. E num belo dia ele viajou com a prima e um "amigo", e ela ficou com este "amigo." Isso foi praticamente a morte pro Renato, E tem outra música que fala desse amor platônico por sua prima. Essa é bem óbvia. A música se chama "Mariane" e foi composta em inglês. O nome da prima do Renato é Mariana.
ResponderExcluirLegal, ótima análise, pra ser sincera pensei que a música falava de violência doméstica e assassinato. Viajei
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