Por que não dar esmolas

Neste final de ano, devido às festas natalinas, acompanhamos várias demonstrações de caridade nos telejornais. Mas uma matéria em particular me chamou a atenção, na qual uma "boa alma" de classe média, em seu veículo de porte pequeno-burguês, estava a distribuir presentes para crianças em uma determinada periferia de São Paulo, terrivelmente castigada pelas enchentes.

Achei impressionante nenhum repórter ter questionado a razão daqueles miseráveis não estarem preparando um peru ao invés de estarem removendo as águas da chuva de dentro de suas casas. Parece que isso não passa pela cabeça da maioria das pessoas. Mas mesmo se alguém perguntar, muita gente vai dar a resposta default: "Mas o mundo é assim mesmo!".

Não obstante eu estar evocando exemplos recentes, caridades acontecem o ano inteiro, o tempo todo. Não em proporções natalinas, mas acontecem.

Mas deixe-me aqui discordar de que a caridade seja algo sempre bom. Não é. A caridade, embora praticada com intenções louváveis, tem o efeito nefasto não de curar as doenças diagnosticadas no seio social, mas apenas de prolongá-las. É isso o que afirma o escritor Oscar Wilde em seu pequeno artigo "A alma do homem sob o socialismo".

Segundo Wilde, os caridosos "buscam solucionar o problema da pobreza... mantendo vivo o pobre. Mas isso não é uma solução: é um agravamento da dificuldade".
As pessoas não querem esmolas, querem dignidade. Querem trabalhar, serem vistas como tendo valor e 
sendo capazes. Os pobres deveriam rejeitar as esmolas, mas ainda lhes falta essa consciência.

Vale a pena ler Wilde sobre isso:

"Frequentemente ouvimos dizer que os pobres são gratos pela caridade. Decerto alguns são gratos, mas nunca os melhores dentre eles. São ingratos, insatisfeitos, desobedientes e rebeldes. Têm toda a razão em o serem. Para eles, a caridade é uma forma ridícula e inadequada de restituição parcial, ou esmola piedosa, em geral acompanhada de alguma tentativa por parte da alma apiedada de tiranizar suas vidas. Por que deveriam ser gratos pelas migalhas que caem da mesa do homem rico? Deveriam é estar sentados a ela, e já começam a se dar conta disso. Quanto à insatisfação, aquele que não se sentisse insatisfeito com essa condição inferior de vida seria um perfeito estúpido. A desobediência é, aos olhos de qualquer estudioso de História, a virtude original do homem. É através da desobediência que se faz o progresso, através da desobediência e da rebelião. Às vezes elogiam-se os pobres por serem parcimoniosos. Mas recomendar-lhes parcimônia é tão grotesco quanto insultuoso. É como aconselhar um homem que esteja passando fome que coma menos.
[...]
Um homem não deveria estar pronto a mostrar-se capaz de viver como um animal mal alimentado. Deveria recusar-se a viver assim, e deveria ou roubar ou viver às expensas do Estado, o que muitos consideram uma forma de roubo. Quanto a pedir esmolas, é mais seguro pedir do que tomar, mas é bem mais digno tomar do que pedir (!). Não: um homem pobre que seja ingrato, perdulário, insatisfeito e rebelde possui decerto uma personalidade plena e verdadeira. Constitui, de qualquer forma, um protesto sadio. Quanto aos pobres virtuosos, é natural que deles se tenha piedade, mas não admiração. Fizeram um acordo secreto com o inimigo e venderam seus direitos inatos em troca de um péssimo prato de comida. Devem também ser muito tolos. Posso compreender que um homem aceite as leis que protegem a propriedade privada e admita sua acumulação, desde que nessas circunstâncias ele próprio seja capaz de atingir alguma forma de existência harmoniosa e intelectual. Parece-me, porém, quase inacreditável que um homem cuja existência se perdeu e abrutalhou por força dessas mesmas leis possa vir a concordar com a sua vigência." (Grifo nosso)

Os bons samaritanos deveriam aplicar melhor seu humanismo. A saída não é manter o pobre vivo para viver na pobreza. A meta adequada, ainda segundo Wilde, é esforçar-se por reconstruir a sociedade em bases tais que nela seja impossível a pobreza. Mas as virtudes altruístas têm na realidade impedido de alcançar essa meta.

Às vezes é difícil conter nossos impulsos altruístas. Eu sou particularmente sensível a uma criança abandonada na rua ou mendigando. Mas isso ao mesmo tempo me dá ódio. Talvez é o sentimento ao qual Che Guevara se referia quando afirmava que "se você é capaz de tremer de indignação a cada vez que se comete uma injustiça no mundo, então somos companheiros".

Mas como comunista, sei que luto por uma sociedade em que isso não vai existir. Seria imbecil acreditar que a solução é apenas deixar de dar esmolas ou de praticar caridades. Este não é o caminho. O caminho é a luta. E a luta, pela via revolucionária, é por uma sociedade em que caridades não sejam necessárias.

Eu confesso que ainda tenho recaídas. Algumas vezes não resisto e compro uma bala de alguma criança que aparece vendendo, apesar do peso na consciência que me sobrevém depois. Mas há poucas semanas resisti a uma garotinha dessas que aparecem na janela do carro. Eu lhe perguntei:

- Quantos anos você tem?
- Onze.
- Você estuda?
- Sim.
- Em que série você está?
- Na quarta.
- Por que você vende balas? É a sua mãe que manda?
- Sim.

E o sinal abriu. Eu não ajudei dessa maneira a melhorar a vida desta garota, que talvez nem se lembre de mim da forma que eu me lembro dela. Mas o que eu guardo dessa situação é esse sentimento de indignação, de ódio contra a exploração e a miséria no capital. E isso me dá forças para seguir em frente em minha militância para a destruição do capitalismo rumo à instauração de uma sociedade superior, a sociedade socialista, o que é, na verdade, uma exigência do próprio desenvolvimento histórico, à medida que cada vez mais o capitalismo, em sua forma imperialista e parasitária, apresenta elementos reais de estagnação.

Refreie os seus impulsos de caridade. Mas não faça só isso. Deixar de prolongar a doença não significa curá-la.

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  1. "Mas não faça só isso. Deixar de prolongar a doença não significa curá-la"

    Confesso, fiz certas caretas, imaginei Sir. Wilde um menor, para no fim, agradecer.

    M. V. M. de Arruda.

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  2. Grandes elucubracoes! parabens...Amigo.

    Miller A.M (Lepidoptero)

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  3. A revolução é precisa, o caminho do genocidio seria bem mais fácil pra resolver tal problema, mais a questão é humanista; e visando o bem para o homem, é preciso cultivar a semente da revolução! Que se levantem os mendigos, que se movam de seu conformismo.

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