Comportamento no trânsito: psicanalisando e filosofando um pouco - Parte I

Ouvi em um noticiário há pouco tempo uma discussão sobre trânsito. Os apresentadores se questionavam sobre como era possível que pessoas absolutamente "calmas" e "normais" em seu cotidiano se transformassem completamente quando estão ao volante.

Isso me remeteu a um comentário de Freud em seus "Três ensaios sobre a sexualidade", no qual ele diz que as perversões sexuais muitas vezes ocorrem de forma isolada em indivíduos que são "normais" em todas as outras áreas. O comportamento no trânsito, de forma semelhante, nem sempre reflete a personalidade do motorista. Pelo menos não aquela consciente.

Já em um outro jornal, vários dias depois, um conhecido jornalista ensaiou uma interpretação psicanalítica do comportamento agressivo ao volante. Neste seu esboço ele dizia que um indivíduo, talvez por um complexo de inferioridade ou por se sentir "passado pra trás" na vida, no amor ou nos negócios, não permitirá que ninguém o "ultrapasse" no trânsito.

Mas o que eu venho tentando compreender é o que deve acontecer com o ego e o superego quando o indivíduo está dirigindo. Sabemos que as pulsões de agressividade provindas do id a todo momento buscando gratificação são combatidas pelo ego. O id, regido pelo princípio de prazer, não se preocupa com o que possa acontecer caso ele consiga o que quer. É o ego, regido pelo princípio de realidade, que faz essa mediação entre as exigências do id e da realidade externa.

É fato que as pulsões do id encontram menor resistência no indivíduo que está ao volante. Parece haver uma "baixa" da guarda do ego e do superego, pois o comportamento transgressor no trânsito nem sempre é percebido como tal. Isso é um comportamento típico do id, um comportamento regido pela busca imediata de alguma gratificação sem se importar com as consequências.

Fico imaginando se isso talvez não seja causado por uma falsa sensação de segurança proporcionada por se estar no interior de uma caixa de metal, que é o carro. Ou se talvez isso seja devido a uma sensação de "invisibilidade" no trânsito. Pessoas que costumam enfiar o dedo no nariz parecem se sentir particularmente invisíveis ao volante.

A "invisibilidade" e sua correlação com um comportamento ético foi abordada por Platão na famosa passagem do anel de Giges, na obra "A República". Este anel, encontrado por Giges, lhe dava a capacidade de se tornar invisível. Percebendo isso, ele seduziu a mulher de seu rei, atacou-o e matou-o com a sua ajuda. Gláucon então afirma que "se, portanto, houvesse dois anéis como este, o homem justo pusesse um, e o injusto outro, não haveria ninguém, ao que parece, tão inabalável que permanecesse no caminho da justiça...", pois "... ninguém é justo por sua vontade, mas constrangido, por entender que a justiça não é um bem para si, individualmente, uma vez que, quando cada um julga que lhe é possível cometer injustiças, comete-as".

Talvez essas falsas sensações de segurança e invisibilidade estejam entre as causas de um enfraquecimento da atuação do ego e do superego na atividade psíquica do motorista ao volante, o que explica seu comportamento agressivo e transgressor, caracterizado pelo princípio de prazer.

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