Há várias formas de se responder a esta pergunta. Vamos começar de maneira propriamente filosófica, analisando a questão e mostrando que ela é capciosa, assemelhando-se a uma falácia de petição de princípio. Este tipo de falácia é quando um argumento pressupõe, logo de partida, o que deveria estabelecer apenas na conclusão, e por isso é uma armadilha tentar responder a perguntas deste tipo sem antes criticá-las.
Imagine que alguém lhe pergunte o seguinte: “Por que você matou sua família ontem à noite?”. Você não tentará dar uma resposta caso não tenha praticado tal crime hediondo. Você questionará imediatamente a própria pergunta e talvez fique até sem reação por alguns instantes, pois a questão é absurda. Você identificou, neste caso, que ela traz em si um pressuposto óbvio: o de que ontem à noite você matou sua família.
Este é um exemplo bem exagerado, mas o exagero é um bom recurso didático. Estamos exagerando justamente para deixar claro que perguntas normalmente carregam pressupostos implícitos, e que devemos analisar bem uma pergunta antes de pensar em uma resposta. Se você tentasse responder à pergunta do nosso exemplo, você estaria implicitamente admitindo que matou sua família. Se isso não aconteceu, no entanto, você evitaria uma resposta direta e questionaria antes a própria pergunta, dizendo algo do tipo: “Sua pergunta não faz sentido. Ninguém matou minha família, estamos todos vivos. E por que você acha que eu mataria minha família?”.
Perguntas assim são inválidas porque pressupõem algo que não foi estabelecido em comum acordo. Se o indivíduo não me perguntou anteriormente se eu matei minha família, e se eu não confirmei esta suspeita, então não faz sentido ele perguntar pela razão de algo que não aconteceu.
Quando então alguém pergunta “para que serve a filosofia?”, este questionamento traz, da mesma maneira, alguns pressupostos implícitos que devemos analisar com cuidado antes de tentar responder. O mais evidente é o de que a filosofia tem que servir para alguma coisa, no sentido de que hoje em dia tudo “serve” para algo. Esta é uma pergunta que não podemos desvincular do nosso período histórico, uma era de pragmatismo, de utilitarismo, em que tudo deve ter “aplicação prática”. Mas será mesmo que a filosofia tem que servir para alguma coisa? E se for este caso, será que ela já não tem sua utilidade, mas quem faz a pergunta simplesmente o ignora?
Observemos o mundo à nossa volta: as pessoas se envolvem nas mais diversas atividades sem jamais questionar sua utilidade. Um exemplo é ter filhos. Para que serve ter filhos? Qual a utilidade de se ter filhos? Aristóteles já havia afirmado que outra dessas coisas é a própria felicidade. Ninguém a quer para alguma coisa, para algum outro propósito. Todos querem a felicidade simplesmente pela felicidade em si. É bem provável que você jamais tenha ouvido a pergunta: “Para que serve ser feliz?”.
Neste sentido, até mesmo algumas áreas da ciência podem ser questionadas sobre sua utilidade. A NASA lançou, no início do milênio, a sonda New Horizons a fim de investigar Plutão. Quase uma década depois, ela chegou ao seu destino e começou a enviar fotos para a Terra. O objetivo era investigar a superfície de nosso vizinho distante e de suas luas, ampliando assim nosso conhecimento sobre os limites do sistema solar. Tendo em vista que não é possível habitar o planeta-anão e que talvez nunca venhamos a visitá-lo enquanto espécie humana, alguém poderia perguntar: “para que serve conhecer os limites do sistema solar? O que isso muda em minha vida, em meu cotidiano? Isso torna a minha vida melhor? Conhecer Plutão paga alguma das minhas dívidas?”. Tais projetos espaciais custam imensas somas de dinheiro aos cofres públicos, e mesmo assim são poucos aqueles que discutem sua utilidade. Nós também não o fazemos, e incentivamos a descoberta de nosso universo. O que queremos ressaltar com este exemplo é que aqueles que perguntam sobre a utilidade da filosofia poderiam também questionar a utilidade de diversas outras atividades da vida e da ciência, mas não o fazem.
Ainda em Aristóteles, lembremos que o filósofo grego dividiu o conhecimento em três categorias, a saber: o conhecimento produtivo, o prático e o filosófico. O produtivo diz respeito a coisas como o saber de um artesão, de um sapateiro ou de um pedreiro, por exemplo. É o conhecimento orientado à produção de objetos materiais. O conhecimento prático diz respeito à ética e à política (elas não “produzem” nada materialmente, mas são práticas, note bem a distinção), e o terceiro é o conhecimento teórico sobre toda a realidade, no qual se encontra a filosofia. Para o estagirita, este terceiro conhecimento tem como objetivo pura e simplesmente “o conhecimento pelo conhecimento”.
A filosofia, para o discípulo de Platão, é superior justamente porque não serve para nada. Se servisse, estaria subordinada a algum interesse, e assim como afirmamos que um indivíduo é livre quando faz o que quer, sem ter que responder a ninguém, assim é a filosofia. Ela não é escrava de ninguém, não obedece a ninguém, e por isso está acima de todas as ciências.
Há ainda outras de formas de responder à questão. Uma delas é oferecida por Marilena Chauí, em sua clássica obra Convite à filosofia, na qual a filósofa elenca algumas de suas “utilidades”. Duas delas seriam: 1) evitar que sejamos submetidos às ideias dominantes e aos poderes estabelecidos, e; 2) buscar compreender o significado do mundo, da cultura e da história. Se isso não for “útil”, é realmente difícil defender racionalmente o que mais neste mundo seria.
Podemos também responder como Gilles Deleuze, para quem a pergunta “para que serve a filosofia?” deve ser respondida agressivamente, pois pretende ser irônica e cáustica. O filósofo francês afirma, na esteira de Nietzsche, que a filosofia serve para entristecer, pois uma filosofia que não entristece ninguém não é filosofia. Ela serve, ademais, para causar dano à estupidez, para torná-la vergonhosa. Parafraseando o slogan reacionário do ex-presidente dos EUA, Donald Trump, um dos lemas da filosofia nestes tempos obscuros poderia ser: “make stupidity shameful again” (torne a estupidez vergonhosa de novo). A filosofia serviria para fazer com que as pessoas tenham vergonha de ser ignorantes.
Glauber Ataide
* Texto extraído do livro Duvidar de tudo: ensaios de filosofia e psicanálise, de Glauber Ataide.
Glaubger, Glauber....
ResponderExcluirMuito bem exposta sua idéia. Diria que a filosofia é algo tão essencial que se torna necessária mesmo não tendo uma "utilidade" explícita?
Penso eu que a filosofia é o que nos separa dos adestrados políticos, religiosos e os inertes!!!
Muita boa sorte!
Bruna Geovanini Varíër
Ótimo blog!
ResponderExcluirA filosofia é tudo, ela que nos diz quais os caminhos, quais as fontes da sabedoria.
A filosofia é a arte que impede que fiquemos loucos.
Provos Brasil
www.provosbrasil.blogspot.com
Parabéns por esse espaço! A filosofia é tudo! Bjos
ResponderExcluirVisite www.corpodiscente.blogspot.com.br
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