O amor exclusivista e o amor-camaradagem em Alexandra Kolontai

O amor é um tema revolucionário. Pelo menos era assim que pensava Alexandra Kolontai (1872-1953), revolucionária russa que se tornou a primeira mulher no mundo a ocupar um posto de ministro de estado. Convencida de que os temas do amor, do sexo e da família eram tarefas atuais da revolução, Kolontai deixou, entre vários textos sobre o tema, a pequena obra "O amor na sociedade comunista" (1918), na qual caracterizou o exclusivismo do amor a uma única pessoa como "burguês" e apresentou o conceito de "amor-camaradagem".

Para Kolontai, o amor não é apenas um sentimento que une os indivíduos, mas é uma mistura, um aglomerado dos mais diversos sentimentos, tais como paixão, ternura espiritual, lástima, inclinação, etc. Sendo tão complexo, não é possível sempre estabelecer uma relação direta entre os diversos tipos de amor que poderíamos enumerar. Enquanto os gregos, por exemplo, utilizavam pelo menos quatro palavras diferentes para expressar o que chamamos de "amor" (como "agápe", "éros", "philía" e "storge"), Kolontai também identifica diferentes tipos de amor, tais como como o amor-reprodução (atração física entre os sexos), o amor-sentimento (atração psíquica), o amor-espiritual e o amor impessoal.

Fundado inicialmente em bases orgânico-biológicas, o amor se encontra hoje separado de tal maneira de suas origens, observa Kolontai, que no amor-amizade, por exemplo, não é possível encontrar a menor atração física. O amor-espiritual, sentido por uma causa ou ideia, assim como o amor impessoal por uma coletividade, são outros exemplos da clivagem que pode haver entre a base biológico-reprodutiva do amor e suas manifestações historicamente mais recentes na linha evolutiva humana.

Sendo o amor um fenômeno tão complexo, surgem, por isso, frequentemente contradições entre suas diversas manifestações. Às vezes acontece, por exemplo, de o amor sentido por uma causa não estar em harmonia com o amor sentido por uma pessoa, ou então o amor por uma pessoa conflitar com um amor que se sente ao mesmo tempo por outra pessoa.

Para Kolontai, "uma mulher pode amar um homem por seu espírito somente se os pensamentos, aspirações e desejos dele" estiverem em harmonia com os seus. Ela pode também, contudo, estar ao mesmo tempo atraída fisicamente por outro homem. E vice-versa. Um homem pode experimentar um sentimento de ternura e de compaixão por uma mulher, mesmo que encontre, em outra, apoio e compreensão. A qual dessas mulheres deveria este homem entregar a plenitude de seu amor? Será mesmo necessário "mutilar sua alma e arrancar um desses sentimentos" quando este homem "só pode adquirir a plenitude de seu ser com a manutenção desses dois laços de amor?"

Este conflito surge do princípio burguês de propriedade. Para Kolontai, a ideologia burguesa gravou na cabeça dos homens a ideia de que o amor dá direito de possuir inteiramente o coração do ser amado, sem compartilhá-lo com ninguém. Escrevendo em 1918 e contribuindo para a construção de uma nova sociedade que se formava na União Soviética, Kolontai buscava estabelecer novas bases para o amor, livres do conceito burguês de propriedade privada. Do ponto de vista da classe operária, onde Kolontai se situa, é muito mais importante e desejável que "as sensações dos homens se enriqueçam cada vez com maior conteúdo e se tornem múltiplas", pois a "multiplicidade da alma constitui precisamente um fato que facilita o desenvolvimento e a educação dos laços do coração e do espírito, mediante os quais se consolidará a coletividade trabalhadora." Desta forma, quanto mais numerosos os fios que se estendem entre as almas, mais solidez adquire o espírito de solidariedade e "com maior facilidade pode realizar-se o ideal da classe operária: camaradagem e união."

O exclusivismo no amor não pode constituir, segundo Kolontai, o ideal do amor para as relações entre os sexos. O proletariado, ao tomar conhecimento da multiplicidade do amor, não se assusta e nem experimenta a hipócrita indignação moral burguesa, a qual arranca do amor toda a sua beleza ao restringí-lo somente ao casal unido legalmente. Fora do matrimônio havia, para o burguês, apenas a atração passageira "sob a forma de carícias compradas (prostituição) ou de carinhos roubados (adultério)."

Do ponto de vista do proletariado, contudo, "é indiferente que o amor tome a forma de uma união estável ou que não tenha mais importância que uma união passageira", afirma Kolontai. A classe operária não pode "fixar limites formais ao amor", e "sente-se indiferente diante dos delicados tons do complexo amoroso, diante das incendiárias cores da paixão ou diante da harmonia do espírito." O importante é que "em todas as manifestações e sentimentos de amor" existam os elementos psíquicos que desenvolvam o sentimento de camaradagem.

O ideal de amor-camaradagem, apresentado por Kolontai como forjado pelo proletariado para substituir o amor conjugal exclusivista da moral burguesa, "está fundado no reconhecimento dos direitos recíprocos na arte de saber respeitar, inclusive no amor, a personalidade do outro num firme apoio mútuo e na comunidade de aspirações coletivas."

Para Kolontai, o amor-camaradagem é o ideal necessário ao proletariado em tempos difíceis, nos quais luta para estabelecer sua hegemonia. A capacidade para amar, atrofiada pelo matrimônio e pela moral burguesa, será então muito maior, e o amor-camaradagem substituirá o princípio de concorrência e egoísmo predominante no capitalismo. "Desaparecerá o frio da solidão moral" do qual os homens tentavam escapar no regime burguês, refugiando-se no matrimônio. Os homens ficarão unidos por inumeráveis laços sentimentais e psíquicos.

Ao passo que na sociedade burguesa "o amor peca sempre por um excesso de absorção de todos os pensamentos, de todos os sentimentos entre dois corações que se amam e que, portanto, isolam e separam o casal amante do resto da coletividade", em uma sociedade na qual o coletivo se impõe definitivamente ao individual - ou seja, no comunismo propriamente dito, que se dá após o socialismo - isso será psicologicamente impossível. Kolontai não arrisca, no entanto, fornecer detalhes de como seriam as relações amorosas nesta nova sociedade, pois considera isso tarefa impossível.

Os três postulados que definem a base do amor-camaradagem no período de transição entre a sociedade burguesa (capitalista) e a sociedade proletária (socialista) são assim resumidos por Kolontai:

1) Igualdade nas relações mútuas (isto é, o desaparecimento da autossuficiência masculina e da servil submissão da individualidade da mulher ao amor);

2) Reconhecimento mútuo e recíproco de seus direitos, sem que nenhum dos seres unidos por relações de amor pretenda a posse absoluta do coração e da alma do ser amado (desaparecimento do sentimento de propriedade fomentado pela civilização burguesa);

3) Sensibilidade fraternal; a arte de assimilar e compreender o trabalho psíquico que se realiza na alma do ser amado (a civilização burguesa só exigia que a mulher possuísse no amor esta sensibilidade).

O amor monogâmico e exclusivista atrofia a capacidade humana de amar, sendo uma extensão do conceito de propriedade privada à esfera das relações humanas. Para Kolontai, não é de forma alguma impossível amar mais de uma pessoa ao mesmo tempo. O amor nunca é abstrato, pois o que se ama em cada indivíduo são sempre características daquele indivíduo. Sendo cada pessoa única, os amores também são, portanto, sempre diferentes, não havendo nada na própria essência ou natureza do amor que o torne exclusivo a apenas um objeto em sua dimensão temporal. Não é difícil perceber o mesmo no amor dos pais para com os filhos: é possível amar todos na mesma intensidade, mas como cada filho é único, os amores são sempre diferentes e simultâneos.


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  1. No meu Noite em paris toco de leve neste tema do amor burguês e não burguês. Kolontai tem razão. Este fenômeno se observa nas sociedades primitivas onde a ppropriedade priva ainda não chegou ou é mínima ainda. Ali observa-se que a monogamia é a regra, embora sem igualdade entre o homem e a mulher, como prega Kolontai. Cj

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    1. Corrigindo: propriedade privada. Em lugar de monogamia, poligamia.

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  2. Hoje, apesar da luta da mulher para se livrar do jugo masculino, se observa que a situação, por um lado até piorou, pois a mulher virou simples objeto sexual. A sociedade machista se manifesta na música, na moda, em todo setor da atividade humana e a mulher se submete e quer se impor pelos apelos sexuais, ao invés de utilizar sua capacidade intelectiva para conquistar seu lugar na sociedade. É doloroso ver a exposição de carnes como num açougue.

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