Freud e a transitoriedade do belo: prazer e desprazer na contemplação estética

A beleza do mundo natural e das criações artísticas serão um dia reduzidas a nada. Mesmo que o tempo não lhes modificasse, que uma nova era geológica não lhes transformasse ou que a própria ação humana não lhes destruísse, é certo que nossa estrela, o sol, em bilhões de anos deixará de emitir sua luz e calor, que toda forma de vida em nosso planeta será extinta e que, com isso, não haverá mais nenhuma lembrança de tudo que se passou neste planeta.

Parece injusto, contudo, que tanta beleza tenha que deixar de existir. Que tanta perfeição não tenha propósito e seja, no fundo, sem nenhum sentido. São exigências de nossa razão prática, e quando a realidade desaponta uma ilusão, segue-se um estado de tristeza e vazio.

A experiência psicológica de contemplar a beleza, ser afetado por ela e, ao mesmo tempo, sentir-se melancólico pela projeção de um fim que talvez nem venhamos a testemunhar abriga duas tendências simultâneas: o prazer da contemplação estética e o desprazer por uma falta imaginada. Segundo Freud, este desprazer diante da transitoriedade do belo é uma antecipação do luto.

O luto é uma reação natural à perda física de um objeto. Nossa libido, que pode ser definida como a nossa capacidade de amar, é dirigida, na infância, ao nosso próprio ego. À medida que crescemos, ela é direcionada e fixada em objetos do mundo externo, os quais se tornam também objetos internos em nossa vida psíquica. O luto acontece quando o objeto do mundo real se perde, é destruído, e a libido tem que se desligar, que se desassociar dele. A dor do luto é justamente a dor da liberação da libido de um objeto.

Pode-se entrar em luto devido à perda de vários tipos de objetos, não apenas pessoas. Qualquer representação ou abstração que ocupe um lugar significativo na vida psíquica de uma pessoa, isso é, que tenha uma forte investida libidinal, pode desencadear um processo de luto. Objetos como um país, a liberdade ou o ideal de alguém são alguns deles.

Artistas ou indivíduos de maior sensibilidade à contemplação estética são capazes de sentir, por isso, profundo pesar diante da perda - mesmo que imaginada ou antecipada - do belo. Mesmo que suas vidas sejam curtas demais para presenciarem uma destruição real de toda a beleza do mundo, a mera possibilidade dessa perda gera uma revolta contra ela.

Freud observou que essa foi a razão pela qual, num certo dia de 1913, ele não foi capaz de dissuadir um jovem poeta, com quem fazia um passeio, de que a transitoriedade da beleza em nada lhe diminui o valor. Para o pai da psicanálise, o que importava era o valor da beleza para nossas próprias vidas psíquicas, pouco importando se um dia as coisas belas deixariam de existir. O fato de serem temporais, e não eternas, não pesa contra elas. 

Embora os argumentos de Freud parecessem a si próprio incontestáveis, ele não foi capaz de convencer seu acompanhante. Notando a perturbação do seu entendimento, sua análise foi a de que uma intensa resistência se encontrava em ação na mente de seu interlocutor, concluindo que o desprazer que ele sentia, que esta melancolia diante da transitoriedade da beleza era uma antecipação do luto, uma reação imaginada à perda de um objeto em que ele havia realizado um forte investimento libidinal.

Se deveríamos nos sentir tristes pela transitoriedade de toda beleza, se é racionalmente justificável tal experiência interna, isso não está em questão. O que o conceito psicanalítico de luto nos ajuda a fazer é apenas descrever, explicar essas duas correntes de pensamento presentes na contemplação do belo. Talvez poderíamos explicar também, através da economia psíquica, a própria experiência do sublime. Mas deixemos essa hipótese para um outro momento.

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  1. não sei se você vai ver esse comentário e não lembro como comecei a seguir teu blog, mas tem uma música que ouço quase todo dia e que fala dessa mesma melancolia da conteplação estética, do vislumbre do luto, etc. eu amo. espero que vc goste: https://www.youtube.com/watch?v=hsj7ZdvdibA

    tem a letra aqui: http://vandaveer.net/lyrics/the-wild-mercury-2016/

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  2. Música linda, Marília, obrigado pela indicação. Não conhecia a banda, e gostei também da letra, bonita e melancólica.

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