Filosofia cristã é filosofia?
Frequentemente nos deparamos com o termo "filosofia" acompanhado das mais diversas qualificações, identificando, dessa forma, a orientação ideológica de um determinado sistema ou escola de pensamento. Mas será que é possível uma real e autêntica integração entre a Filosofia e algum pensamento religioso, sem que isso descaracterize seriamente um ou outro? É a filosofia cristã realmente Filosofia (com "F" maiúsculo)?
Pela própria essência da Filosofia, como uma busca permanente e incessante pelo saber, não podemos considerar filosofias religiosas como propriamente Filosofia. Não existe algo como uma "filosofia cristã", ou uma "filosofia oriental", por exemplo. Característica fundamental da atitude filosófica é o não se considerar em posse da verdade, mas sempre em sua busca. A Filosofia é movimento, é uma maneira de se posicionar diante do mundo. Não é um corpo estático, um conjunto de pensamentos cujo conhecimento confere ao seu possuidor o título de filósofo.
Mas essa característica, no entanto, é suprimida quando a Filosofia se encontra comprometida com pensamentos religosos, tal como acontece na revelação cristã, que apresenta a "verdade" como pronta, como dada aos homens. O pensamento filosófico medieval foi demarcado, delimitado pela fé. A Filosofia teve seu campo de atuação restringido. Era como uma criança cujos pais lhe deram toda a liberdade de andar e brincar... dentro do seu cercadinho. A Filosofia teve pontos de partida e de chegada pré-definidos pela revelação, e a história nos serve de testemunha disso: poucos avanços sofreu a Filosofia neste período. Ela teve, sim, um grande aprofundamento, principalmente na Lógica e nos comentários a Aristóteles, mas pouco apresentou de original num período tão extenso.
A Filosofia na Idade Média esteve subjugada à Teologia, e lhe foi dado inclusive o título de "serva da Teologia". Sua função principal era esclarecer a fé. Mas uma Filosofia privada da atitude crítica não pode, de forma alguma, ser chamada Filosofia. A crítica é uma característica essencial, e não acidental, do pensamento filosófico. Mas que liberdade havia para que a Filosofia criticasse o dogma da Trindade, por exemplo? Ela devia esclarecê-lo, e não criticá-lo.
Talvez, como Hegel, o mais apropriado seja considerar as diversas "filosofias" religiosas como "sabedorias". Assim, teríamos uma sabedoria oriental, uma sabedoria cristã, uma sabedoria budista, etc, mas não "filosofias". Esses sistemas de pensamento, por mais que apresentem algumas características da Filosofia, lhe privam do essencial e não podem, portanto, ser consideradas Filosofia.
E também poderíamos aqui, juntamente com Nietzsche, fazer uma distinção entre os "filósofos" e os "operários filosóficos". O filósofo do martelo, no aforismo 211 de "Além do bem e do mal", afirma:
Insisto em que se deixe de confundir, de uma vez por todas, os operários filosóficos — e em geral, os homens de ciência - com os filósofos, e que a cada um seja dado aquilo que lhe pertence, nem mais, nem menos.[...]Os operários da filosofia segundo o nobre modelo de Kant e de Hegel têm por função estabelecer a existência de fato de certas apreciações de valores — isto é, de antigas suposições e criações de valores, que com o tempo se tornaram dominantes, constrangê-los em certas fórmulas, seja no reino da lógica, seja da política (ou moral) ou da arte. A estes investigadores compete a função de tornar claros, inteligíveis, palpáveis a todos os acontecimentos, todas as avaliações verificados até agora, de abreviar tudo isso, a tudo aquilo que é longo, mesmo o "tempo" e de tornarem-se senhores absolutos do passado, função imensa e admirável, na qual todo orgulho delicado, toda vontade tenaz podem encontrar satisfação. Mas os verdadeiros filósofos são dominadores e legisladores, dizem: "deve ser assim", preestabelecem o caminho e a meta do homem e fazendo isso usufruem do trabalho preparatório de todos os operários da filosofia, de todos os dominadores do passado. Estendem para o futuro as mãos criadoras, tudo aquilo que é e foi, torna-se para eles um meio, um instrumento, um martelo. O seu "conhecer" equivale a um criar, o seu criar a uma legislação, o seu querer à verdade, ao querer o domínio. Existem na atualidade tais filósofos? Não existiram? Não é talvez necessário que existam tais filósofos?
Tal distinção parece adequada para caracterizar corretamente muitos dos pensadores religiosos. Deste ponto de vista, eles são melhor caracterizados não como filósofos, mas sim como operários filosóficos, e seus sistemas de pensamento não seriam "filosofias", mas "sabedorias" de determinada orientação.