Por que filósofos são solitários, ou a ditadura da ignorância

O silenciamento compulsório é uma técnica sutil utilizada pelos agentes da ditadura da ignorância a fim de sufocar os espíritos livres.

Quando você é um indivíduo que busca conhecer a realidade de forma profunda, que não se contenta com as primeiras impressões que se lhe apresentam à consciência, quando você vê o mundo com espanto e admiração e, por essa razão, filosofa, você provavelmente também passa por essa situação de que estou falando.

Essa repressão não acontece porque você é expressamente proibido de falar o que quer. Ninguém, de maneira oficial ou formal, lhe restringe de discursar ou palestrar sobre o que quer que seja. Você é impedido de falar no sentido de que, caso você abra a boca, ninguém irá prestar atenção ao que você dirá, ou então as pessoas passarão a lhe evitar.

Ninguém irá prestar atenção ao que você diz por diversas razões: em alguns casos, porque elas não conseguem lhe compreender; em outros, porque têm indolência (preguiça) intelectual; em outros (esses  até desculpáveis, talvez), porque não conseguem mesmo acompanhar sua odisséia intelectual.

Outras pessoas também passarão a lhe evitar porque a mínima demonstração de seu conhecimento ou cultura pode lhes fazer sentir inferiores. Ou então, elas podem mesmo achar seus discursos extremamente enfadonhos. Quer coisa pior do que um assunto do qual não se entende nada? As pessoas têm costume de não gostar daquilo que não entendem. Esse mecanismo de defesa do ego, chamado restrição do ego, é muito claro nas crianças, conforme demonstrado por Anna Freud em seu livro "O ego e os mecanismos de defesa". Tão logo uma criança percebe que seu desempenho é inferior ao de seus coleguinhas em determinada atividade, ela imediatamente busca uma outra ocupação para evitar essas comparações e competições que lhe trazem dor.

Mas esse mecanismo de defesa, se fosse conscientemente reconhecido, evitaria talvez que se falasse menos bobagens no mundo. Porque o homem comum não sabe que a fonte de sua aversão ao conhecimento reside nele mesmo. Ele pensa que o problema está com as disciplinas do saber.

Um exemplo concreto que faz parte de minha experiência é perceber como algumas pessoas falam mal da filosofia sem terem o mínimo conhecimento do que ela é. Tudo o que elas sabem é que elas não sabem filosofia. E na falta do que falar, falam mal. Nem imaginam que, para criticar a filosofia, deve-se conhecer, e muito, de filosofia. Nenhuma crítica à filosofia pode ser externa a esta, devido à sua própria natureza. E não se conhece filosofia a não ser filosofando. Kant costumava dizer a seus alunos que "não se pode aprender filosofia, só se aprende a filosofar". Ter definições de filosofia não é saber o que a filosofia é. Para isso, é preciso ter vivência. Ter definições formais da filosofia sem vivê-la é como ter um mapa de um lugar ao qual nunca se foi, como afirma Manuel Garcia Morente em sua obra Fundamentos de Filosofia - lições preliminares.

Um problema ainda mais grave no homem comum. porém, é quando ele não se limita a criticar as disciplinas que ele ignora, mas passa a criticar você também. Um fato que me parece comum, depois de observá-lo em diferentes ambientes e com diferentes pessoas, é o de que ele pensa que, ao dialogar com alguém sobre um tema que exija um mínimo de sofisticação intelectual, você está em um "duelo pra ver quem sabe mais". Ele não considera a dialética como uma busca pela verdade, ou como uma atividade que traz um imenso prazer intelectual (que ele desconhece), mas confunde a dialética até mesmo com a sofística, como se fosse uma busca pelo convencimento, independente da verdade.

Mas se ponderarmos em como ele chega a essa conclusão, o que podemos nós próprios concluir? Não parece ser isso construção de sua própria mente? Ou, pra ser mais direto, não parece ser isso um mecanismo de projeção? Pelo menos é o que me parece ser. Ele atribui às outras pessoas comportamentos que ele próprio teria se pudesse estar no lugar desses a quem ele critica. O que deve se passar em seu inconsciente é algo como: "se eu tivesse o nível de conhecimento desses debatedores, eu faria o que eles estão fazendo apenas para me exibir, para mostrar que eu tenho conhecimento". Mas como tal comportamento é inaceitável a seu próprio ego, ele projeta isso em outras pessoas.

Mas até aqui me limitei a interpretar essa situação em um nível psicológico, individual, em termos psicanalíticos. Mas o que dizer quando se analisa essa repressão, esse silenciamento compulsório como um fenômeno que se manifesta socialmente?

Nesta perspectiva, essa repressão "informal" talvez se encaixe no que Émile Durkheim chama de "fato social". O fato social é toda forma de pensar, agir, se comportar, que é imposta de maneira externa ao indivíduo. E tanto mais sucesso ele tem quanto o indivíduo pensa que age por si só, sem perceber que na verdade é por causa dessa coerção externa, do fato social, que ele age como age.

Por sua independência em relação às manifestações individuais, esse é autenticamente um fato social, a ditadura da ignorância. Seu categórico imperativo é: "sê ignorante, ou pereça!". Ser ignorante é condição de sociabilidade. Não o ser é condição suficiente para a exclusão. Porque qualquer um tem paciência e lhe dá o direito de dizer sempre qualquer bobagem, desde que a pauta de seus discursos nunca se afaste da periferia da existência intelectual. Mas esse é o limite. O homem comum não lhe dá o direito de ultrapassá-lo, e caso você o faça, ele não lhe ouvirá nem ao menos por educação.

O homem comum quer sempre falar bobagens, falar sobre o cotidiano, sobre a festa de ontem, sobre a festa de amanhã. Quer contar o quanto ele bebeu, e como ele caiu. Ele gosta de falar sobre as últimas novidades da tecnologia, sobre o novo smartphone que vai comprar. Mas talvez o caso não seja tão grave apenas por causa de falar sobre o cotidiano, mas sim porque ele fala somente disso. Repito, o problema não é falar sobre questões imediatas. O problema é, quero que fique claro, falar somente nessas coisas. 

Quando ele fala sobre questões imediatas, do cotidiano, ou qualquer outra futilidade, fala do que lhe é natural. Ele conversa sobre aquilo que gosta, sobre o que lhe dá prazer. Para ele essas conversações são indulgência. Mas para os espíritos livres (para usar um termo nietzschiano), participar de tais diálogos, os quais não condizem com sua natureza, é abstinência. 

Disso se verifica o quanto essa relação é sempre desigual: para o homem comum, tais conversas são indulgência; para os espíritos livres, são abstinência de si próprios, um sufocamento de seu verdadeiro eu. Talvez seja para evitar essa relação tão desigual e sofrível que muitos filósofos vivem ou afastados da turba, como os filósofos helenistas e romanos, ou em completa solidão.

Epicuro nos legou um interessante aforismo sobre este aspecto. Ele diz o seguinte: "Prefiro proclamar abertamente aos homens, baseando-me no meu conhecimento da natureza, aquilo que lhes seja útil, ainda que ninguém o compreenda, a dar, sob caloroso aplauso da multidão, o meu acordo em tolices". 

E tem semelhante sentido este aforismo de Heráclito, que diz: "Porcos em lama se comprazem, mais que em água limpa". Isso é, cada um deseja aquilo que é de acordo com sua natureza. Isso é, de nada adiantaria levar um porco para uma maravilhosa piscina de águas cristalinas, pois a natureza desse animal é gostar de lama, e é onde ele se sente bem.


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  1. Anônimo6:59 PM

    Muito louco vey... o melhor do seu blog até agora.

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  2. Concordo com o TRUE. Melhor texto já postado por você aqui!

    Abraço!

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  3. Muito instigante. Fico admirado com a relação da Filosofia com a Psicologia. Me causa satisfação ter a condição de compreender tais conceitos, tanto as percepções, quanto as análises psicológicas que constata. Gratificado por expor seus conceitos, fico motivado a dar prosseguimento nos estudos.
    Obrigado, Glauber.

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