Estoicismo: quatro lições de Epicteto para uma sabedoria de vida


A razão pode nos ajudar a viver de maneira mais satisfatória. Muitas das tribulações pelas quais passamos têm origem em nossos pensamentos, de modo que enxergar a realidade sem ilusões pode nos poupar muito sofrimento. Este é um dos principais objetivos da parte prática da filosofia estoica, a qual nos oferece uma sabedoria de vida que pode diminuir nossa ansiedade, dissipar nossas falsas preocupações e até mesmo nos ajudar a lidar com a depressão. As diversas lições do filósofo estoico Epicteto que apresentaremos a seguir estão agrupadas em quatro categorias: 1) não dependa do que não está em seu poder, 2) os pensamentos não são as coisas, 3) nada nos pertence e 4) o filósofo se faz pela prática. Estas lições serão apresentadas após uma breve biografia do filósofo escravo e uma breve introdução ao estoicismo.

Quem foi Epicteto?

Epicteto nasceu por volta do ano 50 d.C. na cidade de Hierápolis, na Frígia (hoje Pamukkale, na Turquia). Filho de uma escrava, ele foi trazido a Roma em idade incerta, não se sabe se ainda enquanto criança ou como um jovem rapaz, e viveu como escravo na casa de um homem chamado Epafrodito. Ele foi logo colocado em liberdade, mas ainda quando escravo já teve contato com a filosofia estoica.

Depois de liberto, Epicteto obteve grande sucesso ensinando em Roma. Com a proibição da filosofia nos anos 92-93 sob o imperador Domiciano, Epicteto se mudou para Nicópolis, onde morreu no ano 125. Assim como Sócrates, Epicteto não escreveu nenhuma obra, de modo que as obras que chegaram até nós em seu nome foram redigidas por seu aluno Arrian (91-170 d.C.).

Ao acentuar a precedência da prática à teoria, Epicteto se coloca, ao lado de Sêneca, como um dos representantes do estoicismo imperial. Uma doutrina fundamental de sua obra diz respeito à distinção entre as coisas que estão em nosso poder e aquelas que não estão. Os indivíduos são responsáveis apenas por aquilo que está em seu poder, de modo que devemos limitar nossos desejos àquilo que de fato está sob nosso controle.

Os seres humanos vivem em um cosmos organizado, mas não podem influenciá-lo. Não faz sentido, por exemplo, lutar contra o destino, e a vida é apenas um teatro no palco da qual somos os atores. O fatalismo da filosofia de Epicteto expressa, neste sentido, o sentimento de impotência do indivíduo diante de um império de forças esmagadoras, não obstante o período de crise. Não é de se admirar, portanto, que quase 2000 anos depois sua filosofia ainda continue proporcionando conforto e orientação em um mundo tão incerto hoje quanto o era no tempo do filósofo grego.

Características gerais do Estoicismo

Tendo em vista que Epicteto é um filósofo da tradição estoica, uma escola filosófica grega surgida no período do helenismo, cabe apresentar aqui alguns traços gerais de sua filosofia. Os estoicos dividiam a filosofia em três partes: Física, Lógica e Ética. De maneira análoga a um ser vivo, a Física seria o sangue e a carne da filosofia, a Lógica, seus ossos e nervos, e a Etica, sua alma. Teoria e prática eram inseparáveis, e a filosofia deveria conduzir a uma vida sem perturbações, a chamada ataraxia, ou imperturbabilidade da alma.

O meio para alcançar este fim era a apatia (apatheia), a insensibilidade diante do prazer e da dor. O adjetivo “estoico” ainda hoje designa alguém que não se importa com nada, que é insensível e indiferente a tudo o que lhe acontece, que não é abalado por nada. Viver feliz, para eles, é viver de acordo com a própria natureza. Como a natureza do homem é a razão, viver feliz é viver racionalmente, de maneira apática, sem ser perturbado pelos sentidos, pelas circunstâncias.

Para isso os estoicos têm como referência o mundo natural. Eles observaram que todo ser vivo apresenta a tendência de conservar a si mesmo, de apropriar-se do próprio ser e de tudo quanto é capaz de conservá-lo, de evitar aquilo que lhe é contrário e de conciliar-se consigo mesmo e com as coisas que são conformes à própria essência. No ser humano, essa tendência se encontra na razão, no viver “conciliando-se” com o próprio ser racional, conservando-o e atualizando-o plenamente. Em outras palavras, a natureza do homem é a razão, e para ser feliz, o homem deve viver de acordo com ela.

Tudo o que não é racional leva à infelicidade. Para viver de acordo com a razão, o indivíduo deve livrar-se de suas paixões e ser insensível tanto ao prazer quanto à dor. As paixões devem ser completamente extirpadas, e não apenas moderadas (como Aristóteles sustentava), pois elas são erros da razão, e erros devem ser eliminados.  A apatia é necessária como o meio pelo qual a ataraxia pode ser alcançada.

A ataraxia é a imperturbabilidade da alma, a verdadeira felicidade, a tranquilidade interior. Não é algo efêmero, mas sim perene, constante, não dependente de circunstâncias. É uma conquista permanente, é o estado a que chegamos quando temos tudo o que queremos, não tememos o futuro e estamos plenamente satisfeitos. É o momento em que descobrimos que nossa satisfação depende apenas de nossas próprias atitudes e escolhas.

Essa felicidade não se encontra no ter, mas no ser. Tentar obter tudo o que desejamos só pode nos levar a mais infelicidade, pois a natureza do desejo é tal que ele nunca pode ser plenamente satisfeito. Tentar saciar o desejo é, valendo-nos de uma analogia budista, como tentar apagar uma fogueira utilizando um líquido inflamável. É por isso que a satisfação plena e duradoura não pode ser alcançada pelas posses ou pela realização de desejos.

Não dependa do que não está em seu poder

Fundamental para a filosofia de Epicteto é a clara distinção entre as coisas que estão em nosso poder e aquelas que não. Em nosso poder estão: pensamentos, impulsos, desejos, repulsa. Outras não estão em nosso poder, tais como: corpo, posses, reputação, cargos. As coisas que estão em nosso poder são livres por natureza, não podendo ser impedidas ou colocadas em grilhões. As coisas que não estão em nosso poder, por outro lado, são fracas e totalmente dependentes, de modo que podem ser tomadas de nós.

Nossos objetivos de vida devem ser colocados de tal modo que nossas maiores aspirações devem depender apenas de nossas próprias forças. Se coloco como alvo me tornar um artista famoso e reconhecido, por exemplo, provavelmente vou trazer a mim mesmo inquietações e infelicidade, pois ficar famoso não depende apenas de mim, mas também do reconhecimento dos outros. Se meu objetivo, contudo, é apenas tornar-me um artista, as chances de me frustrar são muito menores, pois minha formação enquanto artista depende basicamente apenas de mim, de meu talento e de meu esforço. O indivíduo que almeja ser livre não deve desejar aquilo que está em poder dos outros. Se o fizer, será um escravo, e jamais devemos entrar em uma luta na qual não está em nosso poder vencer.

Não devemos, além disso, desejar o impossível. O indivíduo que deseja, por exemplo, que seus filhos, esposa ou amigos vivam para sempre é um tolo. Ele quer que coisas que não estão em seu poder passem a estar, e que aquilo que não lhe pertence passe a ser sua propriedade.

Os pensamentos não são as coisas

Epicteto afirma que não são as coisas que amedrontam os homens, mas os pensamentos sobre as coisas. A morte, por exemplo, não tem nada de terrível em si, e Sócrates o reconheceria se tivesse percebido. O problema é a ideia que fazemos da morte, o que entendemos por isso, de modo que o terrível na morte está em nosso entendimento sobre ela.

Quando um pensamento desagradável passar por sua cabeça, diga-lhe imediatamente: “você é apenas um pensamento, não é de forma alguma aquilo que parece”. Aplique então a regra anterior e verifique se este pensamento diz respeito a algo que está em nosso poder ou não; e se disser respeito a algo que não está em nosso poder, então devemos simplesmente dizer: “não tem a ver comigo!”

Devemos perceber também que não nos ofende aquele que nos xinga ou nos bate, mas o pensamento de que nestes atos há algo ofensivo. Quando alguém te perturbar, tenha em mente que é o seu próprio pensamento que te perturba, de modo que é preciso sempre não se deixar levar pelos pensamentos.

E se os pensamentos não são as coisas, ainda menos nós próprios somos os objetos ou as habilidades que possuímos. Por isso é um erro de Lógica afirmar algo como: “Eu sou mais rico que você, logo, sou melhor que você”; ou então: “Eu falo melhor que você, logo, sou melhor que você”. A conclusão correta de tais raciocínios é a seguinte: “Eu sou mais rico que você, logo, minhas posses são maiores que as suas”; ou então: “Eu falo melhor que você, logo, minha capacidade de expressão é melhor que a sua”. Estas são as conclusões corretas pois não somos nem nossas riquezas, nem nossa capacidade de expressão.

Nada nos pertence

Nunca considere que as coisas lhe pertencem, e não deixe que seu afeto lhe aprisione ao que lhe é externo, àquilo que você não controla. Sempre que algo lhe agradar, afirme em alta voz e de maneira clara que tipo de coisa aquilo é. Se você gosta de uma panela, por exemplo, afirme: “Gosto de uma panela”. Se ela se quebrar, você não será afetado. Quando você beijar seu filho ou sua esposa, então diga a você mesmo que está beijando um ser humano. Se um deles morrer, você não será afetado.

Também é neste sentido que não devemos nos orgulhar pelas características das coisas externas. Se um cavalo afirmasse: “Como sou belo!”, poderíamos até tolerar que ele dissesse tal coisa sobre si mesmo. Quando seu dono, no entanto, afirma: “Que belo cavalo eu tenho!”, ele deveria ter em mente que está orgulhoso de uma característica não dele, mas do cavalo. O que pertence ao dono é unicamente a ideia, o pensamento, a representação. Não devemos ter nem orgulho e nem vergonha daquilo que não é propriamente nosso, o que inclui também a nossa própria reputação.

Também não devemos dizer nunca que perdemos algo, mas apenas que lhe devolvemos. Se seu filho morreu, você apenas o deu de volta; se sua mulher morreu, você apenas a deu de volta. Nossa relação com as coisas deve ser sempre a de um viajante com um hotel: tudo o que pensamos que possuímos não passa de bens alheios sob os nossos cuidados. Somos na vida como convidados de uma refeição: se determinada comida está sendo oferecida a você, estenda a mão e coloque modestamente um pouco no seu prato; se não te oferecerem, também não vá atrás.

Se um corvo anunciar maus presságios, não devemos nos preocupar com isso. O que ele anuncia não nos diz respeito, mas unicamente à nossa esposa, aos nossos filhos, aos nossos bens ou à nossa reputação. Quanto ao que realmente nos pertence, nada pode trazer dano algum a não ser nós mesmos.

O filósofo se faz pela prática

O filósofo deve se calar na maioria das vezes, ou falar apenas o necessário e com poucas palavras. Se a situação exigir alguma conversa, no entanto, então você deve falar, mas não de coisas cotidianas, não de lutas de espadas, de corridas de cavalos, sobre atletas, comidas, bebidas ou outras coisas faladas em todo lugar. E especialmente não de pessoas, nem para maldizer, nem para louvar, nem fazer comparações. O melhor é evitar comer em companhia de estranhos e de pessoas vulgares, mas se acontecer, devemos ficar atentos para não cair em vulgaridades.

Tenho uma identificação íntima com esta regra de conduta estoica, pois não preciso fazer muito esforço para me adequar a ela. Me lembro que certa vez, na sala de espera de um consultório, estava lendo um livro de filosofia, e ao ser chamado pela médica, entrei em sua sala com o livro ainda na mão. Ela se interessou e perguntou que obra era aquela, e expliquei que era de filosofia. Ela então me disse que devia ser realmente interessante saber filosofia para ser capaz de conversar sobre coisas interessantes, pois ela sabia falar apenas sobre “amenidades”. Nunca esqueci que ela usou o termo “amenidades”. Foi a única vez na vida que ouvi alguém fazendo uma análise crítica dos próprios temas de suas conversas, e o simples fato de ela ter tal percepção já lhe coloca muito além da maioria dos indivíduos que nem mesmo se perguntam sobre a qualidade das conversas que travam na maior parte do tempo.

Em relação aos cuidados do corpo, Epicteto afirma que não devemos buscar mais que o necessário quanto a comida, bebida, vestuário ou moradia. No que diz respeito à aparência ou ao luxo, simplesmente rejeite-os! Percebe-se a frivolidade de um indivíduo também pelo tempo que este dedica às atividades do corpo, como se exercitar por muito tempo, demorar muito para comer ou beber, alongar-se demais no banheiro, no sexo, etc. Tais coisas devem ser feitas apenas de maneira ligeira e acessória, ao contrário do Espírito ou vida intelectual, à qual devemos aplicar todo nosso tempo e cuidado.

Há duas regras importantes no que diz respeito à busca ou construção de uma boa reputação. Se você ficar sabendo que alguém está falando mal de você, não tente se defender, mas diga apenas: “esta pessoa não sabe de meus outros defeitos; caso contrário não estaria falando apenas destes!” E quando estiver em sociedade, evite ficar falando de seus próprios atos ou aventuras com muita frequência e desmesuradamente. Não é tão prazeroso para os outros ouvir sobre suas aventuras na mesma medida que é para você falar sobre elas.

O filósofo também não deve nunca se autointitular assim. Ao invés de falar de filosofia entre os leigos, ele deve simplesmente agir entre eles, mostrar sua filosofia na prática, em seus atos. Ao invés de apenas falar, por exemplo, como se deve comer, o filósofo deve comer da forma correta diante de todos, pois o filósofo se faz pela prática. O primeiro e mais necessário capítulo da Filosofia é aquele da aplicação da doutrina à vida, como não mentir, por exemplo. Apenas depois disso é que se deve investigar por que não mentir, e o terceiro passo seria a fundamentação e a explicação do anterior.

Devemos enxergar o mundo e a vida como um grande teatro, no qual somos os atores. Se no teatro do mundo devemos interpretar o papel de mendigo, que assim o seja; se for de um Senhor, também o façamos. Ao pensar que estamos apenas representando um papel, conseguimos ver claramente que não somos aquilo que fazemos.

A morte deve estar a todo momento diante de nossos olhos, pois assim evitamos vulgaridades e satisfações de desejos impetuosos.

Glauber Ataide

Referências

Epiktetus. Das Buch vom geglückten Leben. München: Verlag C. H. Beck, 2017.

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