Pascal sobre Epicuro e Montaigne, ou sobre a relação entre epicurismo, ceticismo e fé cristã


O Colóquio de Pascal com o Senhor de Sacy sobre a leitura de Epicteto e Montaigne é um diálogo que teria ocorrido em janeiro de 1655 entre o filósofo Blaise Pascal e o senhor de Sacy. O texto é de autoria de Nicolas Fontaine, secretário do senhor de Sacy, e foi escrito muitos anos após a morte de Pascal, em 1696, talvez a partir de fragmentos de cartas arranjadas sob a forma de conversação. Sua estrutura compreende cinco seções, sendo três intervenções de Pascal e duas do Senhor de Sacy.

Na introdução do texto Fontaine afirma que o Senhor de Sacy tinha como costume receber ilustres convidados, e conversava com cada um de acordo com sua área de interesse e pesquisas recentes. Pascal, a esta época, era conhecido por seus desenvolvimentos em física e matemática, e era de se esperar, de acordo com esta prática do Senhor de Sacy, que o assunto versasse sobre este tema. O que se segue, no entanto, é uma discussão sobre Epicteto e Montaigne, o que sugere que tal virada se deu por iniciativa de Pascal. Sacy afirma que não conhece nada destes dois autores, e pede que Pascal lhe explique.

Como o título sugere, a conversa se dá em torno dos representantes das maiores seitas filosóficas do mundo, que são o estoicismo e o ceticismo. Pascal era um recém convertido à religião cristã à época desta conversa, e uma de suas principais preocupações era saber se havia algo a ser aproveitado pelos cristãos nestas filosofias. Pascal quer mostrar o quanto estas doutrinas se aproximam e se extraviam da virtude essencial.

Na avaliação de Pascal, o estoicismo tem como mérito reconhecer o dever do homem, isso é, viver uma vida exemplar e submetida a Deus, mas peca em seu excessivo orgulho ao considerar que Deus já deu ao homem todos os meios de cumprir suas obrigações, podendo assim, se tornar santo e companheiro de Deus. Ela leva a uma “soberba diabólica”, induzindo ainda a outros erros, como pensar que a alma é parte da substância divina e que podemos nos matar quando perseguidos (pois podemos crer que Deus nos chama), entre outros.

O ceticismo, por sua vez, tem como mérito depor a razão “com suas próprias armas”, ferindo-lhe a soberba e mostrando a incerteza de todas as convicções alcançadas por meios puramente racionais, seja em relação às leis, aos costumes ou à ciência. Sua incerteza gira sobre si mesma. Ele ataca tudo, inclusive os heréticos e os ateus. O problema do ceticismo reside, no entanto, em reconhecer apenas a miséria da condição humana e na disposição de espírito ocasionada por suas conclusões: ele leva à preguiça, à indolência, ao desespero, à covardia e à inquietude. Como tudo é incerto fora da fé e não há progressos na busca pela verdade e pelo bem, o melhor é deixar isso aos outros. Pascal chega até mesmo a atribuir a Montaigne a ideia de um “gênio maligno”, formulada, na verdade, por Descartes, o que reforça o caráter de sua crítica ao ceticismo como um todo, e não apenas a Montaigne. Levando às últimas consequências, o ceticismo de Montaigne é uma revolta sangrenta do homem contra o próprio homem.

Assim como na natureza é possível ver alguns atributos de Deus, nas produções do espírito também se manifestam aproximações para imitar a virtude essencial. O estoicismo e o ceticismo são as únicas doutrinas conforme a razão, pois ou há um Deus, e ele estabelece o soberano bem, ou Ele é incerto, assim como o soberano bem, e são ambos ignorados.

Estas filosofias, no entanto, se contradizem e não podem ser conciliadas unicamente através da razão. Não se obteria uma moral perfeita ao uni-las, mas sim uma guerra e uma destruição geral. Elas não se anulam simplesmente quando contrapostas. Suas antinomias são insolúveis. Elas esgotam as possibilidades da filosofia. O estoicismo estabeleceria a certeza e a grandeza do homem e, o ceticismo, a dúvida e a fraqueza do homem. Não podem subsistir sozinhos por causa de seus defeitos e nem podem se unir por causa de suas oposições. Seus erros são igualmente perigosos, podendo levar a cair nos mais diversos vícios. A fonte dos erros de ambas é não compreender que o estado atual do homem é diferente daquele de sua criação.

A verdade surgiria ao se conhecer estes dois estados juntos. Vendo-os separados, chega-se apenas ou ao orgulho ou à covardia. Eles se destroem e se anulam para dar lugar à verdade do Evangelho.

Este colóquio evidencia a compreensão inicial de Pascal quanto ao caráter que a apologética moderna deveria tomar. Sua crítica a ambas as filosofias é de viés teológico, cristão. O problema de ambas não é que sejam falsas, mas sim incompletas. Uma exagera na grandeza do homem, e a outra, em suas limitações.

É preciso chegar a um ponto que dê conta dessas contrariedades, e Pascal quer introduzir a perspectiva segundo a qual a natureza humana ganha legibilidade. A conciliação entre ambas as filosofias só pode ser alcançada ao se ultrapassar a própria filosofia. Apenas através dos dogmas da queda, do pecado original e da redenção é que se pode compreender a situação do homem, que ainda guarda em si algo de sua grandeza original, mas que se encontra corrompido pelo pecado.

O senhor de Sacy representa nesta obra o antifilósofo, e considera, junto com Santo Agostinho, prejudicial ao cristão as leituras profanas. Ele confirma que não conhece nada destes dois autores, pois lhe foi recomendado que não os lesse, pois suas palavras não procedem da humildade e da piedade. Ele considera que Montaigne renova uma doutrina que era considerada loucura pelos cristãos. Montaigne passou pela mesma experiência que Santo Agostinho quando utilizou a dúvida universal para atacar os acadêmicos. Embora essas leituras tenham sido úteis a Pascal, nem todos saberiam extrair delas a mesma riqueza que Pascal conseguiu.

Pascal reconhece a utilidade da leitura destes dois filósofos para os cristãos. Em Epicteto ele encontra uma arte incomparável de perturbar o repouso daqueles que o buscam nas coisas exteriores e Montaigne, por sua vez, é incomparável por confundir o orgulho daqueles que, fora da fé, se orgulham de uma justiça verdadeira.

O discurso de Pascal não é para converter o Senhor de Sacy à filosofia, mas para ajudá-lo a compreender como uma reflexão sobre as filosofias ajudaria o homem de fé em sua conversão. Pascal não considera que será bom passar pelo deus dos filósofos para chegar ao Deus de Jesus Cristo. O Deus sensível ao coração não é o Primeiro Motor de Aristóteles.

Ao final do colóquio ambos estão de acordo, tendo chegado ao mesmo ponto através de diferentes caminhos: Pascal fez um excurso mais longo, através da filosofia, para chegar às verdades da fé cristã, enquanto que o Senhor de Sacy também chegou às mesmas verdades, mas pelo caminho imediato da fé e das escrituras.

Pascal confere à razão um papel importante, mas limitado. Ela não teria um papel meramente negativo, e nem totalmente positivo. Ele não pode, por isso, ser considerado um fideísta. Ele está em uma posição intermediária.

Sua compreensão de que estas filosofias não são simplesmente falsas, mas incompletas, apontam no sentido de que algumas verdades podem ser acessadas através da razão, embora esta não seja suficiente para levar à verdade total, completa.

O pensamento de Pascal compreendido neste colóquio revela uma preocupação essencialmente antropológica. Pascal não está investigando, por exemplo, a capacidade ou os limites da razão humana. Sua investigação parte do homem. É a partir da análise da situação do homem que ele chega à conclusão de que só as verdades do cristianismo dão conta de explicar de maneira satisfatória e coerente sua situação no mundo, esta vivência contraditória do homem.

Se a análise antropológica de Pascal nos revela uma perspectiva verdadeira isso constituiria uma prova a favor do cristianismo. E se isso constitui uma prova, ele, Pascal, não está mais na posição de uma fé cega e não precisa fornecer uma demonstração tão pretensiosa como Descartes.

Glauber Ataide

 

 

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